Sharapova e os convites da discórdia
Alexandre Cossenza
02/03/2017 17h46
Suspensa desde janeiro de 2016 após exames antidoping realizados no Australian Open apontarem a presença da substância proibida meldonium, Maria Sharapova voltou a ser o centro de discórdias nesta semana. O gancho da russa terminará em abril, e a ex-número 1 já tem garantidos wild cards para disputar os WTAs de Stuttgart, Madri e Roma. A polêmica fica por conta de quem acredita que um atleta punido por doping não deveria receber convites – opinião compartilhada pelo número 1 do mundo, Andy Murray, e pelo novo presidente da Federação Francesa de Tênis (FFT), Bernard Giudicelli.
Os wild cards (na essência, convites da organização) são essenciais para Sharapova porque a russa ficou mais de um ano suspensa. Logo, já perdeu todos os pontos no ranking e não conseguiria sequer vagas no qualifying para disputar torneios de alto nível. Pela regra, como ex-número 1 do mundo e campeã de slam, a russa tem direito a WCs ilimitados. Pode jogar quantos eventos puder, desde que os organizadores concedam o benefício. Mas não é o regulamento que está em discussão (ainda?). A questão, para Murray e Giudicelli, é moral.
Murray deu uma entrevista ao Times dizendo que deveria ser preciso ralar na volta. "Porém, a maioria dos torneios vai fazer o que é melhor para o seu evento. Se eles acham que grandes nomes vão vender mais ingressos, eles vão fazer isso." O argumento do escocês deixa implícito que o retorno sem ranking é – ou deveria ser – uma parte da punição por doping. Afinal, de que adianta fazer o tenista perder seus pontos se ele consegue entrar em qualquer torneio quando acaba a suspensão? É um ponto de vista válido e levanta uma questão: será que os regulamentos deveriam ser revistos nesse quesito?
O presidente da FFT também aborda a questão moral, embora por outro lado. Ele argumenta que "não podemos investir um milhão e meio de euros na luta contra o doping e acabar convidando uma jogadora condenada pelo consumo de uma substância proibida." Ele e Murray atacam o mesmo ponto, mas por ângulos diferentes. E a declaração do cartola francês deixa no ar que Sharapova pode não receber o convite e ficar fora de Roland Garros.
O outro lado da questão é que, tecnicamente falando, ninguém está impedido de convidar Sharapova para jogar, dançar valsa ou sapatear na cara da sociedade. Nenhuma regra impede wild cards para tenistas que voltam de suspensão por doping. O caso da russa, aliás, não é o primeiro. Viktor Troicki, suspenso por violar o código antidoping, recebeu convites para os ATPs de Gstaad e Pequim logo que voltou, em 2014. Há, no entanto, uma diferença grande entre os dois casos. O sérvio nunca testou positivo. Sua suspensão veio porque, segundo a ATP, ele se negou a fazer um exame durante o Masters de Monte Carlo. Sharapova foi, sim, flagrada com uma substância proibida.
Entre morais e regras, uma coisa é certa: todas posições e decisões que envolveram o doping de Sharapova até agora têm a ver com dinheiro. Desde a posição/omissão do presidente da WTA, Steve Simon, cauteloso para não ofender os fãs da russa e não virar contra a WTA uma máquina de fazer dinheiro, incluindo patrocinadores que ameaçaram debandar mas continuaram ao lado da russa (apesar da suspensão de 15 meses), e chegando, finalmente, aos torneios distribuindo wild cards em nome do espetáculo.
Por enquanto, só se manifestou contra a russa quem não tem interesse financeiro na coisa. Andy Murray, despreocupado com o politicamente correto, deu uma declaração abrangente, que não inclui apenas Sharapova, mas que afeta a russa e, certamente, incomodou fãs de tênis (e também fãs apenas da russa) mundo afora. O presidente da FFT, por sua vez, sabe que Roland Garros não perde sem Maria ou quem quer que seja. Slams são slams, não importa quem joga. O torneio de 2016 não foi menos revelante sem ela ou até mesmo Roger Federer. O dinheiro entra de qualquer modo.
Difícil prever a esta altura o que será do retorno de Sharapova, mas se os interesses financeiros continuarem dando as cartas, é bem possível que a russa ganhe todos convites que pedir e, ainda assim, fique fora de Roland Garros – e, dependendo de seu ranking, de Wimbledon também.
Coisas que eu acho que acho:
– De qualquer maneira, Sharapova terá a chance de entrar em Roland Garros por méritos próprios. Para isso, precisa alcançar a final do WTA de Stuttgart. Assim, terá ranking para disputar o qualifying em Paris. Os pontos de Madri e Roma não contarão a tempo do slam francês, mas serão essenciais mais tarde, na definição da chave principal de Wimbledon.
– Tudo leva a crer que, para evitar alimentar o debate, Wimbledon anunciará sua posição no último minuto – se necessário. Afinal, não é tão improvável assim que Sharapova consiga pontos suficientes para estar na chave principal em Londres. A estimativa é de que ela consegue entrar direto se alcançar cerca de 650 pontos.
– É outro caso de moral/dinheiro, mas o mais estranho disso tudo, para mim, é mexer na programação de um torneio inteiro para facilitar a vida de um tenista que volta de suspensão por doping. Vai acontecer em Stuttgart. O torneio começa dia 24 de abril, mas Sharapova só estará apta a jogar no dia 26 (até o dia 25, ela não pode sequer pisar no local do evento). Com isso, um jogo de primeira rodada terá de ser realizado só na quarta-feira, quando o torneio normalmente já estaria nas oitavas de final. E, dependendo do sorteio, isso pode fazer com que uma cabeça de chave estreie apenas na quinta-feira (a chave lá tem 28 tenistas). Não seria inédito, mas tendo em mente o motivo para isso, pode incomodar bastante alguém se acontecer. De qualquer maneira, a Porsche, patrocinadora máster do evento, é também patrocinadora de Sharapova. E aí qualquer discussão sobre moral ou valores acaba sendo jogada janela afora.
– Um ponto curioso aqui é não vi ninguém citando o "benefício da dúvida" no caso do doping de Sharapova. A russa alegou que não sabia que meldonium havia entrado na lista de substâncias proibidas e isso foi levado em conta na arbitragem que diminuiu sua punição. O que talvez pese contra a ex-número 1 no meio tenístico é que ela sabia que o meldonium lhe dava benefícios físicos, por isso tomava doses maiores em partidas mais importantes – e isso foi constatado no julgamento. Mas se um diretor de torneio acredita genuinamente que Sharapova não se dopou de propósito, parece um tanto justo que um wild card funcione como instrumento do "benefício da dúvida".
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Sobre o autor
Alexandre Cossenza é bacharel em direito e largou os tribunais para abraçar o jornalismo. Passou por redações grandes, cobre tênis profissionalmente há oito anos e também escreve sobre futebol. Já bateu bola com Nadal e Federer e acredita que é possível apreciar ambos em medidas iguais.
Contato: ac@cossenza.org
Sobre o blog
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