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Larri Passos e a luta contra o câncer: "Falei 'Deus, me dá o que eu mereço'"

Alexandre Cossenza

28/06/2019 04h00

Ele sempre foi do tipo que acorda cedo, parte para a quadra e fica lá até escurecer ou esgotar seus tenistas. Larri Passos moldou Gustavo Kuerten, o maior nome do tênis masculino brasileiro, e ajudou a formar uma geração que veio depois. Thiago Monteiro e Bia Haddad Maia, atuais números 1 do país, passaram por sua academia em Camboriú (SC). Só que o treinador que parecia uma fonte inesgotável de energia encontrou um obstáculo inesperado. Em março de 2018, foi diagnosticado com um câncer na próstata.

A partir dali, aquele super-homem precisou batalhar pela vida. Escondeu o problema de todos e, mesmo depois de uma cirurgia, encontrou forças para viajar pelo circuito mundial. Hoje, plenamente recuperado e trabalhando em parceria com o Time Guga durante o WTT de Curitiba, torneio com premiação de US$ 15 mil, mostra a força de outros tempos e fala em fazer mais um grande tenista num prazo de cinco anos.

Com o torneio interrompido pela chuva, Larri conversou comigo – estou aqui a convite do Instituto Sports – e abriu o jogo. Contou como descobriu o tumor e o que pensou antes e depois da cirurgia. Revelou as dores e o medo que sentiu. Falou sobre a mudança para os Estados Unidos, onde estabeleceu residência há três anos, e, claro, sobre tênis. Muito tênis. No post de hoje, publico a primeira parte dessa conversa. É a metade mais forte, em que Larri compartilhou as emoções de lidar com a grave doença. Confiram abaixo:

Você está aqui treinando o Mateus Alves, não?

Estou fazendo uma consultoria para a Equipe Guga Kuerten, mas eu faço uma consultoria de 15 em 15 minutos (risos)! Tu tá entendendo? Olha como é bacana isso! Porque esse pessoal precisa de informações. Se tu não tem uma pessoa que dê uma referência para eles… É muito bacana isso, poder dar essa informação. É o que acontece aqui. Eu estava ali de manhã, aí teve o intervalo do jogo do Mateus, já chegaram dois técnicos, perguntaram, conversaram. "Mas pô, Larri, ele mudou o jogo, ele saiu do sufoco, agora está dominando." Eu falei "Pois é." É por isso que eu estou aqui. Para poder auxiliar nessa transição. Não é só no convívio do passado, mas no recente. Duas semanas atrás, eu estava em Roland Garros com o João Domingues [português número 168 do mundo]. Ele me contratou para fazer uma consultoria de novo. Estive em São Paulo com ele e depois, com meu câncer, não pude mais viajar com ele.

Eu ia chegar nesse assunto, mas continua. Depois a gente volta.

Então tu pode ver que os meus olhos brilham aqui dentro. Eu estou ali com os meninos, conversando, aí o Orlandinho estava ali, falando sobre Braga [torneio em Portugal], eu estava lá com ele. Falei que ele estava mexendo o pescoço antes, apelidei ele de Pescoço (risos). Fui lá, conversei com ele, falei "tu vai melhorar tua direita porque se tu estabilizar um pouco mais o teu pescoço, tocar na bola e acompanhar um pouco mais com teu olho…"

Ele fazia isso (gesticulei movendo o pescoço para a esquerda antes de uma batida de direita)?

Ao contrário. Com o pescoço para cá. Aí! (Larri confirma quando eu viro o pescoço para a direita enquanto movimento o braço simulando um golpe de forehand) Eu estava assistindo o jogo dele lá em Braga, aí ele chegou para mim e eu falei "E aí, Pescoço?" Ele olhou para mim e falou "Larri, estou muito mais firme." Na outra semana, ganhou um torneio (risos). Então essa essência do amor – é claro que eu tenho que ganhar dinheiro – mas é essa essência do amor que faz uma transformação. A gente não pode deixar isso de lado. Sempre que eu usei o coração com a razão, eu tive sucesso. Eu não vou mudar isso aí. Não adianta.

Como você decide quando vai treinar alguém, quando vai viajar, etc.? Por exemplo: foi uma surpresa para mim, uns anos atrás, quando você apareceu com o [Guilherme] Clezar em um torneio. Como é que foi isso?

Vou te explicar (risos). O Guilherme foi uma coisa muito… Eu estava nos EUA, estava tranquilo, fazendo algumas consultorias, trabalhei algumas semanas na China… A federação chinesa queria que eu morasse lá, eu falei não. Aí voltei, e ele queria parar de jogar tênis. Mandou uma mensagem para mim, eu falei "Tu não pode parar de jogar tênis, tem 24 anos. É muito cedo para parar de jogar tênis." Ele falou "Tu me ajuda?", eu disse "Claro!" Aí surgiu a oportunidade. Eu fazia semanas com ele. Foi legal pra caramba! Ele nunca tinha ganhado muitos jogos na Europa, aí fez várias finais na Europa, fez final de Cáli, teve excelentes resultados. Acho que até pela confiança de estar comigo, de eu olhar no olho dele… É diferente. É diferente! Eu estou com o Mateus ali, ele está na dúvida, eu olho e "Mateus, é isso aqui que tu tem que fazer, tá?" E depois do jogo ele vem falar comigo: "Demais, Larri!" Aí no vestiário eu falo assim: "Tu não me muda mais isso agora." Depois eu vou estar nos EUA, e ele vai estar com o técnico dele. Mas aí surgiu a oportunidade de trabalhar com o Guilherme e vou dizer uma coisa para ti, cara: foi sensacional! Gostei muito. Em setembro do ano passado, ele estava jogando muito bem. Tinha perdido do [italiano Lorenzo] Sonego na negra do qualifying do US Open, um jogão, perdeu por detalhes. E conversei com ele. Eu estava fazendo minha radioterapia, tinha 35 sessões para fazer. Tinha acabado de fazer 10 sessões, mas ele não sabia que eu tinha câncer.

Quem sabia?

Ninguém sabia. Eu viajava com ele me recuperando e ele não sabia. Sempre enrolava ele para não assustar. Eu corria de manhã, acordava 6h da manhã e chá verde, chá verde, chá verde porque é anticancerígeno. Em setembro do ano passado, eu falei para ele: "Tenho que fazer toda essa parte de radioterapia e vou me dedicar para mim agora." E falei que a gente precisava decidir. "Ou tu vem para cá, nos EUA…" E ele optou em não ficar lá. Eu queria que ele chegasse perto dos 100. Eu queria. Ele disse "não". E a radioterapia, se tu deixar de fazer duas semanas, perdeu todo o efeito. Toda semana eu tinha que ir. Não podia ficar três semanas sem fazer a rádio. Eu realmente me dediquei a mim mesmo. No Rio [Open], eu falei "Deus me disse: cuida de ti agora." Então a gente se separou ali, e eu fiquei muito sentido. Tanto é que ele caiu bastante.

Eu soube do câncer só quando você falou na Sony…

Na Sony!

Eu não estava vendo o jogo, e o Cesar [Augusto, jornalista que narrava os jogos pelo canal ao lado de Larri nas transmissões] me mandou uma mensagem dizendo, e eu nem fazia ideia. Você descobriu como?

Foi engraçado. Teve o ATP de São Paulo, aquele em que eu estava com o João Domingues e o Clezar [Brasil Open de 2018]. Os dois passaram o quali, o Clezar nunca tinha ganhado um jogo na chave principal…

Ganhou do Monteiro!

Ganhou do Monteiro. E eu tinha ido a Camboriú com os dois treinar três dias. Fui fazer uma endoscopia. Fui ao meu médico de 25 anos, meu gastro, e eu pedi para ele… Não sei, isso aí vem lá de cima, né? (Larri olha e aponta para o céu) Eu falei "por favor, podia pegar uma prescrição para eu fazer uma geral do meu abdômen?" "Mas por quê, Larri?" "Ah, eu queria fazer." Ele deu a prescrição, eu desci e fiz. O radiologista começou a olhar e falou assim: "Vai no banheiro". Eu fui urinar porque ficou muito líquido dentro. Ele falou assim: "Tu urinou só 110 mililitros. Tu tá com mais 700 mililitros dentro da tua bexiga, e isso não tá legal." Mas eu, esportista… Ele falou "Tua próstata entrou dentro da tua bexiga e está bloqueando. Vai atrás disso aí. Vou fazer 16 imagens para você levar para os EUA e ver lá." Eu comecei a ficar preocupado. Cheguei em São Paulo, no ATP, e falei com o [médico Gilbert] Bang. Fui no Einstein, consultei com o bambambam da urologia… Não vou dizer o nome, não precisa. Ele disse assim: "Não, Larri, a gente pode fazer uma raspagem e tu vai ter uma vida normal." Eu falei assim: "Não gostei." Aí eles [tenistas] perderam, e eu peguei o avião e fui para minha casa. Cheguei e já fui no meu médico. Eu tenho um clínico geral e quando tem um problema ele faz um referral e me passa para outro. Fui no outro, ele falou para mim "Não gostei desse exame, amanhã vamos fazer uma biópsia." No outro dia, fiz a biópsia e já deu. Dia 15 de março do ano passado. Cheguei e falei para ele: "Podemos operar amanhã?" "Amanhã não dá. Só em abril." Ligou para o hospital e disse "Larri, dia 17 de abril podemos fazer." Fechado. "Larri, tu não quer consultar outro médico?" "Nada disso." Ele disse "Vamos tirar a próstata. Quero tirar isso logo." Já saí dali, já fui na igreja, conversei… E a Carla, minha esposa, chorando. Eu falei "Esquece, nós vamos sair dessa." E operei. É duro porque tu… A vida inteira, tu não tem nada. É um super-homem. Acorda de manhã, 6h, fica até as 10h da noite no tênis…

E, de repente, precisa lidar com um negócio completamente fora do seu controle…

Aprendi muito. Aprendo muito. De hoje desfrutar esses momentos, de estar ali, sentado à mesa com os meninos. Trocando ideias, conversando, perguntando… Isso me faz muito bem. Sempre me fez bem, mas agora mais ainda por poder estar vivendo esses momentos com eles.

Você valoriza mais…

Eu não precisava de lição de vida porque acho que a vida inteira não fiz mal pra ninguém. Às vezes a gente fala "É pra aprender a …" Eu falei "Deus, me dá o que eu mereço. Se tu quiser me levar, tu me leva." No pós-cirúrgico, chegava de noite e pá, a dor que eu sofria… O pós-cirúrgico é muito violento. Tu fica constipado, muda tudo, tu grita de dor. Minha filha dizia "aperta a morfina", aí eu dizia "a morfina é para os soldados que estão na guerra" (risos). As enfermeiras achavam que eu era o paciente mais louco. "Tu não usa morfina!" "Não uso morfina porque nós temos que economizar." (mais risos) Mas, no finalzinho, tive que usar morfina mesmo. A dor era muito grande. São coisas que eu nunca tinha passado. E depois tem aquela coisa de saber que tu tem duas filhas, né? Eu ia levar minha filha no ônibus, via a Sofia subindo no ônibus com as perninhas assim… Tu fica dentro do teu carro, olhando aquilo e chorando.

As meninas sabiam de tudo?

Sim. Logo que saiu o exame, a gente fez uma reunião, e eu falei para elas. A minha irmã, a minha esposa, o Bang, o Guga e elas foram as únicas pessoas que eu avisei. Eu acompanho muito a mídia às vezes, eu não acho legal. A pessoa começa a postar, postar, postar, fazer…

Quando está passando pelo processo todo, né?

Eu não acho legal isso, pô. Acho que é uma coisa pessoal tua. Depois, sim. As pessoas, hoje, me agradecem. Muitas pessoas que estão em dúvida – a gente tem uma comunidade de pessoas que tiveram câncer na próstata, que a gente conversa muito. A gente troca ideia. "Pessoal, façam o exame." É o segundo câncer que mais mata nos EUA. Semana passada, tive um exame com outro urologista porque o meu faleceu. O cara que salvou minha vida morreu. O cara com 51 anos de idade…

Nossa senhora…

Ele gostava de pescar e sair de lancha. No dia 9 de março deste ano, de manhã, eu ia viajar com os meninos e o Mateus para alguns torneios nos EUA. Eu ia fazer esse trabalho para o Guga e liguei para ele [o urologista]. Ele disse "está espetacular o seu PSA [antígeno prostático específico], tu tá pronto para viajar. Quando tu voltar, nós vamos fazer um follow-up e tu tá bem." Às 7h da noite daquele dia, ele morreu. Teve um ataque cardíaco dentro da lancha e bateu. Cristão, um cara fantástico, dois filhos, jogava tênis, jogava golfe… Não era mais meu médico, era amigo meu. Voltei e fiquei muito mal. Fiquei meio órfão. Ficou uma relação muito grande, muito legal.

E agora, está tudo bem?

E a tua testosterona…. Vou te dar um exemplo: a testosterona num homem de 61 anos de idade deve ficar entre 350 ng/dl (nanogramas por decilitro) a 1.035 ng/dl. Eu fiz o exame por minha conta só para saber, por curiosidade. Trinta e cinco. O mínimo é 350, e o máximo é 1.035. Então imagina eu, jogando tênis, dando treino, com 35 de testosterona. Vou fazer 62 anos em dezembro. Mas o que eu digo pra ti é o seguinte: a endorfina e a dopamina que nós temos, que o esportista tem, é uma coisa fantástica.

E isso vai ficar assim?

Não. Nessa última consulta, eu perguntei: "E aí, doutor, o que faço com a testosterona?" Ele falou: "Nada! Vai voltar natural. Não toca em remédio!" É proibido porque é a testosterona que tem no teu corpo que provoca o câncer de próstata. Então agora tu vai te dando conta… Aquela força, pô, minha testosterona devia ser muito alta (risos). Então é isso. A Carla sempre fala pra mim porque quando eu tive o câncer e saí do consultório, eu fiquei muito revoltado, sabe? Falei pra ela "Tu vai pra casa, eu quero ficar sozinho." Inconscientemente, tomei o caminho da igreja. Tem uma capela que eu sempre vou de bicicleta, me concentro lá. Sou muito da energia que tem, e aí olhei para cima e falei "Por que eu?" Daqui a pouco, comecei a rir e falei assim: "Por que não eu?" (risos) Porque Ele me deu tudo, cara. É uma coisa de louco, uma coisa tão bacana. Tu vê um cara que começou lá em Novo Hamburgo, família pobre, que tinha que esconder a raquete embaixo da camisa porque quem tinha raquete era "rico". Todo mundo ria da minha cara, eu passava pelos amigos com a raquete escondida, pra jogar, com 12-13 anos. E chegar aonde eu cheguei! Falei "Deus, muito obrigado. Desculpe." Por que não eu? Eu tenho que passar por isso também. É um desafio. Então a Carla ri pra mim e diz "Tu podia escrever pelo menos 50 páginas." Escrever "Por que não eu?" para as pessoas. Passar essa experiência. A Carla briga muito comigo porque ela queria que eu escrevesse um livro.

E por que você não escreve?

Mas eu me sinto com muita energia, eu sinto que alguma coisa pode acontecer na minha vida.

Mas não precisa ser um livro definitivo. Você pode fazer um agora e outro depois!

Essa experiência que eu tive agora, cada momento que eu ia caminhar, tinha que parar pra esvaziar a urina do depósito, aí caminhava de novo, enchia de novo, tinha que tirar… Isso tudo são coisas que tu tem que brigar, tem que lutar com essas coisas. E a operação, que era para ser de duas horas, uma hora e meia, foi oito horas. Teve que refazer a bexiga porque a próstata grudou dentro da bexiga. Ele teve que cortar, tirar e refazer a bexiga. Olhou para a minha cara e falou: "Leva a sério. A tua operação foi muito séria." Ele foi um cara muito especial na minha vida. Toda essa parte aí é muito dura.

Neste sábado, 29 de junho, o blog publica a segunda parte da entrevista com Larri Passos. Ele fala da mudança para os Estados Unidos, de sua paixão pelo tênis e de como é importante a ajuda de pessoas experientes a jovens no início de suas trajetórias no profissionalismo.

Sobre o autor

Alexandre Cossenza é bacharel em direito e largou os tribunais para abraçar o jornalismo. Passou por redações grandes, cobre tênis profissionalmente há oito anos e também escreve sobre futebol. Já bateu bola com Nadal e Federer e acredita que é possível apreciar ambos em medidas iguais.
Contato: ac@cossenza.org

Sobre o blog

Se é sobre tênis, aparece aqui. Entrevistas, análises, curiosidades, crônicas e críticas. Às vezes fiscal, às vezes corneta, dependendo do dia, do assunto e de quem lê. Sempre crítico e autêntico, doa a quem doer.