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Guga em Miami, parte I: dez anos após aposentadoria, a imagem supera o atleta

Alexandre Cossenza

09/04/2019 13h48

Desde que deixou o tênis profissional, em 2008, Gustavo Kuerten entrou para o Hall da Fama, tornou-se embaixador de Roland Garros, associou-se a marcas globais como Lacoste, Peugeot e Hublot e teve seu rosto em vitrines e painéis no mundo todo, do Catar a Punta del Este, incluindo Nova York, Paris, Veneza, Milão, Londres e outras grandes cidades. O ex-número 1 do mundo também fez um sucesso estrondoso com sua participação nas transmissões dos Jogos Olímpicos Rio 2016 pela TV Globo, época em que ganhou o apelido de labrador humano. Também foi escolhido homem do ano pela revista GQ em 2018, dez anos depois de pendurar as raquetes.

O tempo passou, mas a marca Guga segue mais forte do que nunca. A imagem do catarinense, hoje com 42 anos, é tão ou mais valiosa do que quando ele brigava por títulos no circuito. Foi sobre isso que conversamos em Miami, há pouco mais de uma semana, em uma das lojas da Lacoste na Flórida. Um papo que entusiasmou o tricampeão de Roland Garros, que adorou comentar as ramificações de seu trabalho junto com o irmão Rafael e toda equipe que o acompanhou desde o início da carreira. Uma conversa tão animada que valeu uma segunda parte para a entrevista. O segundo encontro aconteceu a convite do próprio Guga, que quis fazer um "complemento". Foi outro papo delicioso, dentro da Suíte Lacoste, no Hard Rock Stadium, durante a final masculina do Miami Open entre Roger Federer e John Isner.

O ex-número 1 acredita que sua imagem atual até ultrapassa a do Guga tenista em algumas ocasiões. Ele fala sobre como foi o trabalho para construí-la e como ele e sua equipe se esforçam constantemente para atender marcas globais de uma maneira que até ultrapasse as expectativas do parceiro. Nesta primeira parte da entrevista (a segunda será publicada amanhã), Guga fala sobre o início desse planejamento – desde antes da aposentadoria no tênis – suas parcerias mais duradouras e o processo para selecioná-las, a opção por não entrar na política apesar dos muitos convites e as ofertas milionárias de bebidas alcoólicas que nunca aceitou. Role a página e confira!

Você parou de jogar 11 anos atrás, e sua figura ainda está muito presente e quase sempre inquestionável. Sua imagem de herói nacional hoje parece ser tão forte quanto antes. Você concorda com isso?

A percepção sobre a imagem é mais aprofundada e ampla do que na época em que eu jogava, quando a atenção total era para o tênis, para bater na bola, vencer os jogos. De fato, acho até que é bem empolgante porque em alguns casos a imagem ultrapassou os meus melhores momentos… Obviamente que naquela ocasião o estrondo era constante – era outro diálogo, né? – mas hoje o valor e o contínuo envolvimento em ações boas e a dedicação em estar presente e fazer diferenças, trazer inspiração para as pessoas, ser impactante… Isso faz toda a diferença. A gente já entendeu há bastante tempo. Eu tive o privilégio de meu irmão empresariar desde o início. Foram diversos anos de aprendizado desde o primeiro Roland Garros, em 1997, que pegou todo mundo de calça curta, mas, ao mesmo tempo, já tinha a Diana [Gabanyi, assessora de imprensa] dentro do processo, já tinha Carvalinho [empresário de Guga na época]. Dois anos antes a gente iniciou uma estrutura para cuidar de algo que era importante.

Mas havia um plano quando parou de jogar? Você sentou com o Rafael [Kuerten, irmão] e estabeleceu isso, isso e isso?

Nessa época, a gente já tinha um plano definido. Quais eram os próximos passos, quais eram as pretensões e, obviamente, o ponto final ainda tinha uma margem para desenvolvimento, só que a gente sabia que ia continuar na tarefa de perpetuar essa imagem, de envolver as pessoas. É um ativo muito valioso para o nosso país. O mais difícil é construir tudo. Depois, deixar isso dissolver? Igual à história da Maria Esther Bueno, que ficou adormecida durante 30 anos? É um prejuízo danado para todo mundo! Por isso que quando eu parei de jogar, muitos projetos ainda eram inalcançáveis, mas a gente sabia que dali até hoje – é muito claro para mim que o atleta tem mais valor depois da carreira profissional do que antes, quando ele só pode se dedicar para uma coisa. O que aconteceu muito naquela ocasião: "Vai para a Confederação? E agora? Vai ser capitão de Copa Davis?" Tudo isso… Foi fácil de perceber que o nosso papel é diferente do que normalmente as pessoas têm por ideia. E algumas parcerias, como a da Lacoste, que é super estratégica e agrega valor, está próxima de Roland Garros e disposta a trabalhar ainda no tênis, e o Instituto Guga Kuerten, que dá uma alma constante, e isso que é o determinante. A gente continua produzindo muito. Tem conteúdo de sobra.

Você falou da Lacoste, e eu ia perguntar sobre isso porque você já se associou a marcas grandes, com visibilidade internacional, como Peugeot e Hublot. Foi uma preocupação sua se associar a marcas assim ou é uma espécie de ciclo onde estar associado a uma marca global te torna mais atraente a outra marca desse porte?

Todos esses movimentos são muito bem estudados e que começaram lá em 1995. Através, primeiro, do Rafa, bolando ideias, e depois com a inclusão de Carvalhinho, Diana e Jorge [Salkeld, agente], que tinha uma noção de mercado, e a gente foi aprendendo. Até falando no ícone internacional, a nossa empresa é criada para cuidar de um personagem, em vez de atender vários atletas. A gente foi desenvolvendo um know-how bem interessante para tomar decisões como a da Lacoste, em estar próximo de Roland Garros, uma história que é genuína e vai agregar valor em outros futuros contratos. Com a Aurora também, que é uma parceria local com estrutura de cooperativismo, com mais de 100 mil famílias, que para nós faz muito sentido. O encaixe das peças é essa perenidade da marca. Sem uma ambição enorme, sem trocar os pés pelas mãos, e dentro de um projeto, que é continuar desenvolvendo muito próximo ao tênis, dentro de educação… E as marcas navegam com facilidade nesse tipo de raciocínio. É um assunto que me interessa muito porque a imagem extrapola qualquer tipo da capacidade do personagem. A leitura que as pessoas fazem sobre um atleta – como ele se relaciona, com que marca ele está – é isso que vale a imagem, em vez de a pessoa por si só. E a gente vive nessa discussão de 10-12 anos com a Receita Federal, tentando comprovar uma coisa que é uma necessidade dos atletas.

[Acusado pelo Conselho Administrativo da Receita Federal de ter usado a empresa Guga Kuerten Participações e Empreendimentos para recolher menos impostos sobre ganhos entre 1999 e 2002, Guga foi autuado em R$ 7 milhões. Derrotado na esfera administrativa em 2016, o tenista recorre no âmbito jurídico, alegando que a imagem é maior do que uma pessoa só e, por isso, precisa de uma empresa para cuidar de parcerias e contratos]

A carreira tem 15-18 anos se o cara for extraordinário. Pode ter carreira de cinco anos, que é só um trampolim. As histórias que a gente tem do passado, com atletas que perderam tudo… Elas são a grande maioria ainda. Aquilo dissolve muito rápido. A visão tem que ser diferente. Eu fui privilegiado por ter isso desde 1996. Algo que fora do Brasil, principalmente aqui nos EUA, é comum. A gente vê atletas se destacando mais ainda, como Michael Jordan e Magic Johnson, no pós-carreira profissional. Um ano antes de eu parar, a gente estava prevendo para se preparar. Eu lembro ainda da sala, com todo mundo discutindo. "E agora? Como vão ser os próximos passos?" Na época em que você está jogando, as empresas naturalmente aparecem. Acho que por isso as pessoas ficam mais acomodadas.

Vem muito fácil, né?

A pessoa acaba precisando pensar pouco, e já naquela época a gente tinha esse discernimento. Poucos parceiros e muito selecionados. Também reservar espaço para minha vida pessoal, para conviver com as crianças e minha esposa. Para poder atender de uma forma genuína. É claro que ainda é assustador às vezes ir lá em Paris e ver… Parece que foi ontem! É emocionante. É inimaginável. São essas consequências da carreira que a gente não espera. E só acontece, de fato, por causa disso. Sete anos atrás, com a Lacoste, iniciar um projeto que foi… Lembro que em 2004 eles chegaram com a proposta para a gente assinar.

Já em 2004?

Eu falei "Não, Jorge, vou fazer uma cirurgia daqui a seis meses, não está certo eu fechar um negócio com eles se daqui a pouco eu vou ter que parar."

Então me conta dessa paquera antiga!

A gente estava namorando lá em 2004. Eles estavam com o contrato na mesa para assinar. Falei: "Eu até sigo adiante, mas vou parar daqui a seis meses, preciso fazer outra cirurgia, e a gente não sabe o que vai acontecer." E foi um cenário muito ruim. Depois dali, eu praticamente não joguei. E naquele ano, eu fiz quartas de final de Roland Garros, bateu na trave [Guga eliminou Roger Federer e foi derrotado por David Nalbandian]. A pretensão deles aumentou, e a gente, por ter o diálogo aberto, não é que não deu certo. A gente postergou algo que deu muito mais certo. Assinei em 2012, se não me engano. Já passaram sete anos e vamos para um ciclo de 10 anos porque vamos fechar para mais três anos. É nesse nível que os encaixes foram acontecendo. A Aurora nós já estamos batendo os 10 anos. Tem a parceria da Grendene, que o licenciamento durou 15 anos. A parceria de óculos, da Lougge, já vai para o décimo ano também. Eles estão desde a primeira Semana Guga. Agora nossa mudança para a Genial Investimentos foi muito nessa capacidade, até como sócio, de poder acreditar nessa vertical do esporte, da educação, da transformação. A gente percebe isso, viveu isso e acontece!

E apesar desse trabalho todo de bastidores, de estudo de parcerias, as pessoas têm uma percepção sua que é a de um cara genuíno, que não faz força para mostrar uma imagem que não é a sua.

Até hoje, a gente tem esse benefício de poder escolher. A carreira também me deu isso. Fica fácil determinar que mais vale entender bem o que se quer para poder fazer aquilo. Nesse ponto, "não" é o que a gente mais dá.

Dá um exemplo de proposta que você rejeita?

Bebida alcoólica nós deixamos de aceitar em nossa carreira desde o primeiro dia. A minha imagem hoje ainda é muito vinculada à criança, assim como a pessoas de 80-90 anos. Por esse lado, é uma gama de oportunidades gigantesca. E também é um desafio de manter essa chama acesa. E aí vêm projetos especiais, como foi o caso das Olimpíadas [Guga trabalhou nas transmissões da TV Globo], que extrapolam as expectativas.

Foi quando surgiu o "labrador humano"…

É! E aí vem uma surpresa que no final faz sentido porque a gente está se dedicando, sim. A forma de atender é especial se você for ver. Aqui, nós temos três pessoas para atender a Lacoste, além do meu irmão, que está fazendo a parte estratégica. É um outro calibre, um outro nível de atendimento. Ao ponto de conseguir transmitir que isso tem um valor agregado, que isso tem um tíquete mais caro, e que às vezes vem o dobro do preço, e a gente diz "não, obrigado" porque o meu cliente já está no trilho. Foram episódios que aconteceram desde o início da carreira. A filosofia foi mantida até nesses primeiros encontros, com o Larri [Passos, técnico] e o Jorge, que eram mais caseiros, mas ao mesmo tempo profissionais. E no início era assim: "Turma, vocês se viram. Eu vou jogar, vocês dão conta do recado." Eu lembro que me assustei quando a gente se reuniu lá em Roland Garros, e o Jorge disse "campeão de Grand Slam vale US$ 10 milhões". Eu falei "Vocês ficam nessa sala aí discutindo o que é bom, e eu vou para lá jogar." Eu nem sabia de propaganda, o tipo de conteúdo que tinha, as frases – essa delicadeza de olhar – evitar tal assunto… Eu chegava e sabia que o pessoal já estava com esse contexto e que eu podia fazer uma hora [de entrevistas ou ações publicitárias] e sair para treinar de novo. Hoje, a gente entende desde como a imagem funciona até o que a empresa precisa e já entrega personalizado. Para a Lacoste, é um tipo de projeto. A Aurora é completamente diferente. A Embraed é outro universo. Agora temos que concentrar em cada vez fazer menos para atender melhor. Essa que é a grande sacada, sabe? Do potencial de uma imagem. Conseguir estar bem relacionado, com projetos certos e impactantes, para fazer melhor do que se espera.

Eu já li, mas nunca te perguntei e queria aproveitar esse assunto de imagem pra tocar nesse assunto… Algum tempo atrás, falava-se que você entraria na política. Você não entrou – ou pelo menos não entrou publicamente. Isso tem a ver com preservar a imagem ou não achou uma linha que encaixasse com seus valores?

Um cargo político, desde a parte mais regional ali de Florianópolis e Santa Catarina, e a pretensão de prefeito, governador ou qualquer tipo… Fui convidado para senador, deputado, o que viesse pela frente.

Foi mesmo?

Ah, normal. Desde o início até…

Por que partido?

Provavelmente, a maioria. A turma já está tão acostumada e já sabe que não que não se aproxima, mas todo mundo quer…

A imagem!

É. Quer se aproximar e talvez queira a entrega também, não só a imagem. O benefício eu acho que é genuíno, mas para a gente, hoje, e eu só ia completar com a parte esportiva, que envolve, federação, Confederação, COB e tudo mais porque isso limita a capacidade da imagem. Limita a capacidade que a gente tem. Eu vou chegar em casa, a minha esposa vai falar "Pô!". O primeiro "não" já vem de dentro de casa (risos). Eu tenho um filho de 5 anos, outro de 7 anos. Talvez daqui a 15-20 anos eu possa ainda trazer muito benefício e fazer essa parte. Outras partes da minha vida são agora! De alguma forma, é uma decisão mais individualista, mas é real para mim. No fim das contas, constantemente estamos pensando no que fazemos e para onde vamos, tanto na parte social e institucional, de Instituto Guga Kuerten, quanto na parte de empresa.

Na segunda parte da entrevista, que será publicada amanhã aqui no blog, Guga revela detalhes de sua longa negociação com a TV Globo, fala sobre como pretende transformar o tênis brasileiro com suas escolinhas e diz que vai manter o "jeito Jerry Maguire" de fazer as coisas no ambiente corporativo.

Sobre o autor

Alexandre Cossenza é bacharel em direito e largou os tribunais para abraçar o jornalismo. Passou por redações grandes, cobre tênis profissionalmente há oito anos e também escreve sobre futebol. Já bateu bola com Nadal e Federer e acredita que é possível apreciar ambos em medidas iguais.
Contato: ac@cossenza.org

Sobre o blog

Se é sobre tênis, aparece aqui. Entrevistas, análises, curiosidades, crônicas e críticas. Às vezes fiscal, às vezes corneta, dependendo do dia, do assunto e de quem lê. Sempre crítico e autêntico, doa a quem doer.