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Saque e Voleio

Uma grande vitória antes da despedida

Alexandre Cossenza

24/03/2019 10h52

Acontece com muitos dos grandes nomes na história do tênis. Suas qualidades lhe permitem jogar em alto nível por mais tempo do que os rivais, até que uma lesão (ou mais) aparece. O veterano já não consegue mais treinar por tanto tempo, seu nível cai, e a aposentadoria surge no horizonte. Não está sendo diferente com David Ferrer, que se aproxima do 37º aniversário (2 de abril) e já marcou data para o fim da carreira.

No caso específico do espanhol, a culpa é de uma tendinopatia nos dois pés. Quanto mais tempo em quadra, mais dor. Com 20 anos de circuito profissional nas costas – e, claro, nos pés – não havia muito mais a fazer. O cidadão que passou 590 semanas no top 20, foi #3 do mundo, disputou uma final de slam e conquistou 27 títulos em simples já não aguentava mais o ritmo. Escolheu um punhado de torneios especiais e começou o tour de despedida em 2019.

Ganhou homenagens por onde passou. Auckland, Buenos Aires, Acapulco. Conseguiu até bons resultados. Bateu Haase na Nova Zelândia, salvou seis set points e superou Jaziri na Argentina. Superou Sandgren no México. Triunfos que seriam rotineiros em qualquer outro momento de sua carreira. Só que mesmo colocando na balança o peso da idade e das lesões, as horas de treino a menos, seria ingenuidade não imaginar que Ferrer teria um último grande escalpo para sua coleção. E ele veio em Miami…

Logo em Miami, um torneio muito especial, mas que também traz uma lembrança doída para o espanhol. Em 2013, na final com Andy Murray, ele teve match point e achou que uma direita do escocês havia saído. Parou o ponto, pediu o replay e viu o Hawk-Eye apontar bola dentro por milímetros. Andy acabou saindo de quadra com o título ao vencer o terceiro set no tie-break.

Pois foi nessa mesma Miami, embora em outro local, que David Ferrer derrubou o número 3 do mundo neste sábado, na segunda rodada. Uma partida que parecia rumar para um triunfo sem drama de Alexander Zverev, que fez 6/2 na primeira parcial. Só que o alemão cometeu três duplas faltas no primeiro game do segundo set e abriu uma janela. Convidou o veterano para a partida, e bons guerreiros não fogem de batalhas. Ferrer estava lá para, mais uma vez, ser o pior pesadelo de um oponente mais alto e mais forte.

Do segundo set em diante, Ferrer deu as cartas na maioria dos pontos, jogando mais dentro da quadra, enquanto Zverev recuou. O alemão de 21 anos, aliás, tem armas respeitáveis, mas quando sua confiança é abalada, tende a dar uns passos para trás e trocar bolas sem objetivo aparente. O jovem ainda não tem a inteligência tática que pode (vai?) lhe permitir dar outro salto de qualidade. Ferrer se aproveitou disso, ganhando quase todas disputas junto à rede e levando vantagem nas variações.

O golpe de misericórdia veio em duas partes. Primeiro, o espanhol salvou um break point no quarto game do terceiro set e confirmou o saque saindo da defesa para o ataque e executando uma passada na paralela. Em seguida, quebrou Zverev graças a um incrível lob e uma direita indefensável. O alemão pouco fez depois disso. No nono game, mais uma quebra. Game, set, match, Ferrer: 2/6, 7/5, 6/3. Pela 51ª vez na vida, David bate um top 10. A grande vitória, talvez a última delas, veio em Miami.

Uma cena belíssima de ver na última temporada de um homem que pode ser exemplo para muito mais pessoas do que Federer ou Djokovic. Parafraseando meu amigo Sylvio Bastos, é difícil ensinar alguém a volear como Federer ou a deslizar na quadra dura como Djokovic, mas todo mundo pode olhar para um David Ferrer e copiar sua dedicação, sua ética de trabalho, sua postura dentro de uma quadra de tênis – e isso vale para qualquer profissão.

Que Ferrer aproveite seus últimos jogos como nós aproveitamos sua carreira. De novo: muito obrigado, David.

Coisas que eu acho que acho:

– Uma das maiores injustiças que ainda é cometida contra Ferrer é chamá-lo de defensivo, empurrador de bola. Ser defensivo é diferente de ser o mais agressivo em quadra, e não é fácil ser o mais agressivo quando os rivais quase sempre têm bolas mais pesadas e saques mais velozes. Ferrer lidou com isso a carreira inteira e compensou com pernas e inteligência na construção de pontos, mas nunca deixou de atacar quando conseguia desequilibrar rivais.

– Os números da vitória sobre Zverev são uma amostra pequena, mas que dizem um bocado sobre o que Ferrer sempre conseguiu fazer. Disparou o mesmo número de winners que o alemão (descontando os saques), teve aproveitamento excelente junto à rede e fez o #3 do mundo correr mais do que ele ao longo da partida. Não precisa dizer muito mais.

– Em uma entrevista recente, perguntaram a Gasquet por que a geração francesa com ele, Tsonga, Simon, Monfils e outros não venceu um slam. Richard deu uma pequena aula sobre a força do Big Four e falou sobre como Roland Garros se tornou um torneio impossível de vencer de uns tempos para cá (leia-se "desde que Rafael Nadal surgiu"). O mesmo vale para Ferrer. Durante alguns anos, o espanhol foi o melhor dos mortais. Nenhum Big Four vai apagar isso.

Sobre o autor

Alexandre Cossenza é bacharel em direito e largou os tribunais para abraçar o jornalismo. Passou por redações grandes, cobre tênis profissionalmente há oito anos e também escreve sobre futebol. Já bateu bola com Nadal e Federer e acredita que é possível apreciar ambos em medidas iguais.
Contato: ac@cossenza.org

Sobre o blog

Se é sobre tênis, aparece aqui. Entrevistas, análises, curiosidades, crônicas e críticas. Às vezes fiscal, às vezes corneta, dependendo do dia, do assunto e de quem lê. Sempre crítico e autêntico, doa a quem doer.