7 elementos que explicam o crime e a pena de Jorge Lacerda e Dacio Campos
Todo mundo já sabe que Jorge Lacerda, Dacio Campos e Ricardo Marzola foram condenados a prisão por crime de peculato, que é apropriar-se ou desviar dinheiro público em proveito próprio. No caso, a Justiça Federal considerou que os três agiram em conjunto durante o evento Grand Champions, de 2011, como mostrou ontem o Demétrio no Olhar Olímpico.
A condenação, mais do que prender o ex-presidente da CBT e o ex-comentarista número 1 de tênis do SporTV, manda um recado para todos promotores que fazem torneio com dinheiro de Lei de Incentivo: a fiscalização existe, e a Justiça pode demorar – neste caso, sete anos do evento até a condenação – mas vai atuar quando houver irregularidades.
Neste caso, as irregularidades foram muitas e nem foi preciso uma grande investigação para descobri-las. Não foi o caso de escuta telefônica nem de quebrar sigilo bancário. Bastou ouvir os envolvidos e juntar os documentos para constatar que havia muita coisa errada. A sentença da juíza federal Raecler Baldresca é dura. Vejam abaixo sete pontos cruciais, juntamente com o valor que cada um terá de pagar em multas, que ultrapassam R$ 100 mil:
1. Lucro
Um dos princípios básicos de trabalhar com dinheiro de Lei de Incentivo é que a proposta precisa ser feita por uma instituição sem fins lucrativos. Por isso, a proposta foi feita pela CBT – e não por Dacio Campos, dono da promotora que realizou o torneio. No entanto, segundo a sentença, o ex-comentarista e seu contador admitiram terem obtido lucro. Leiam o trecho abaixo:
"Nesse passo, a lei de incentivo prevê que apenas entidades sem fins lucrativos podem ser proponentes de projetos junto ao ME, eis que a finalidade não é a obtenção de lucro com o evento esportivo, o que, diga-se, foi constatado no caso dos autos, em que o próprio acusado DACIO e seu contador confirmaram ter obtido lucro. E tanto a vedação para antecipação de pagamento, quanto à intermediação da aplicação dos recursos eram de pleno conhecimento de JORGE e DACIO, tanto que este último informou em seu interrogatório que procurou a CBT para que esta realizasse a proposta junto ao ME justamente em face desse impedimento. Não há dúvidas, portanto, que os réus JORGE e DACIO descumpriram todos esses impedimentos, tendo sido demonstrado que a intenção inicial sempre foi a obtenção de lucro por parte de ambos ."
2. Fim público
Um evento realizado com dinheiro público deveria ter um objetivo público. É o que espera o Ministério do Esporte quando aprova um projeto de Lei de Incentivo e autoriza uma entidade a captar patrocínio desta maneira. Como o Grand Champions foi fechado em um clube privado e usou dinheiro para fazer uma área VIP apenas para sócios do clube, passou longe de seu objetivo. Foi isso que apontou a juíza:
"Restou comprovado que o torneio realizado no Clube Harmonia foi, na realidade, um evento privado, a que o público em geral teve acesso apenas com o pagamento de ingressos e, ainda assim, sem gozar do conforto destinado aos convidados dos patrocinadores e sócios do clube. Tratou-se, em verdade, de um evento privado custeado com recursos públicos, bastante distante da proposta original, que tinha como objetivos principais: Como se vê, não houve nenhuma prova que sequer sugerisse que o evento que custou mais de seiscentos mil reais em 2011 tenha tido alguma finalidade pública ou que tenha alcançado os objetivos declarados na proposta de captação. Ao contrário, a prova é robusta no sentido de demonstrar que os recursos públicos foram utilizados para custear uma área vip, destinada aos sócios de um dos clubes mais restritos da cidade e de convidados de patrocinadores, visando ao conforto e ao bem estar de um público abastado, em total desacordo com a proposta original apresentada por JORGE para obter a autorização para a captação."
3. Informações falsas
A nota fiscal de R$ 400 mil apresentada pela empresa de Dacio Campos foi rejeitada pela Justiça. A justificativa do ex-comentarista teria sido de que o dinheiro foi pelo aluguel do espaço do clube, mas dirigentes do Harmonia revelaram que o clube não recebeu dinheiro para alugar o espaço. Além disso, a juíza argumenta que a a empresa "Dacio Campos Promoções Esportivas" subcontratou serviços de sua própria empresa. A sentença cita o pagamento de R$ 80 mil para a montagem de camarotes, mas o serviço teria sido prestado por uma empresa que cobrou R$ 21.800 pelo serviço.
"Além do descumprimento de diversas cláusulas contratuais e dispositivos legais como já explicitado, restou demonstrado que a apresentação de documentos contendo falsas informações tinha o objetivo de mascarar a contabilidade do evento e encobrir o desvio de finalidade, pretendendo justificar despesas com custo muito superior às realizadas. Com efeito, além da nota fiscal de 400 mil reais referentes ao aluguel do espaço que não ocorreu e que foi emitida pela empresa Premier Sports Brasil, administrada pelo réu DACIO CAMPOS, consta do procedimento de prestação de contas diversos pagamentos à empresa "Dacio Campos Promoções Esportivas", também do réu DACIO, o que comprova que DACIO subcontratou serviços de sua própria empresa (confira-se documentos do Volume 2 do CD-ROM de fl. 789). Dentre as notas fiscais apresentadas pela empresa "Dacio Campos Promoções Esportivas", uma em especial aponta despesa em total desconformidade com o conjunto probatório, eis que atesta o pagamento de R$80.000,00 para montagem de camarotes para o "Gran Champions 2011", sendo certo que tal serviço foi prestado pela empresa da testemunha Celso Roberto Federigui, que atestou que foi sua empresa a responsável pela prestação de serviços de aluguel e montagem nas arquibancadas, camarote e torre de televisão, tendo tudo custado o valor de R$21.800,00."
4. A quadra que nunca foi construída
Aqui, o trio condenado usa como justificativa a mudança de local do evento, que inicialmente seria realizado no WTC, em São Paulo. Marzola, que seria responsável pela construção da quadra e encomendou a fabricação de piso emborrachado. Piso que nunca foi utilizado porque o torneio foi na quadra de saibro do Harmonia. Mesmo assim, a pedido da CBT, Marzola emitiu uma nota fiscal de R$ 40 mil que foi apresentada na prestação de contas (dois anos atrás, Marzola admitiu ter dado uma declaração falsa – sabendo ser falsa – a pedido da entidade).
A coisa fica confusa porque Lacerda disse à Justiça que assumiria o prejuízo, mas apresentou a nota fiscal de Marzola na prestação de contas – uma contradição que a juíza fez questão de destacar.
"Especialmente em relação a RICARDO, observo que o uso de bem público como se privado fosse se repetiu. A prova oral confirmou a falsidade do teor da nota fiscal de 40 mil reais emitida por sua empresa, eis que não houve qualquer confecção de quadra de tênis no Clube Harmonia, tanto assim que o próprio réu JORGE decidiu "que assumiria o prejuízo". Entretanto, se de fato tivesse a intenção de assumir o prejuízo, jamais teria apresentado referido comprovante de pagamento de serviço que não foi realizado. A justificativa de que houve antecipação de pagamento para a preparação prévia da manta utilizada para a confecção da quadra seria razoável se não houvessem apresentado a nota fiscal respectiva no processo de prestação de contas. Note-se que o evento ocorreu no final de maio e a prestação de contas teve início em novembro de 2011, havendo um intervalo de seis meses durante o qual poderiam os réus ter corrigido suas informações."
"Embora a defesa de RICARDO alegue que efetuou a restituição dos valores recebidos em agosto e setembro de 2011, apresentando microfilmagem de diversos cheques emitidos em favor de DACIO, não há nada nos autos que indique que tais títulos se referem à devolução dos valores recebidos indevidamente. Ao contrário, chama a atenção o fato de que há três cheques emitidos no dia 30 de agosto de 2011 com valores diversos, um cheque emitido no dia 01 de setembro de 2011 e um cheque emitido no dia 06 de setembro de 2011 (fls. 1679/1684), não tendo sido esclarecido o motivo pelo qual não houve apenas um cheque no valor total, tampouco um documento formalizando a restituição. Este aspecto confirma ainda mais as contradições existentes entre as versões dos próprios acusados, eis que JORGE e DACIO sustentam que a CBT "assumiria o prejuízo", mas RICARDO afirma que restituiu os valores por meio dos cheques emitidos no mesmo dia."
5. Prejuízo à União
Desde que a CBT devolveu o dinheiro, Lacerda repetiu para a imprensa que não houve prejuízo à União. Falou isso várias vezes para jornalistas e adotou o mesmo discurso em sua defesa na Justiça. Não colou. Lacerda, aliás, mesmo sem corrigir a prestação de contas, fez um pedido de reconsideração quando a CBT recebeu a ordem de devolver o dinheiro. Para a juíza, isso mostra a intenção de encobrir o desvio de recursos públicos e de não devolver os mais de R$ 500 mil.
"Aliás, quanto às alegações da defesa no sentido de que não teria havido prejuízo à União por ter ocorrido a devolução dos valores, melhor sorte não assiste aos réus. Com efeito, a prestação de contas e a apresentação dos documentos contendo informações inverídicas foram realizados em novembro de 2011, sendo certo que em 06 de fevereiro de 2013 houve a notificação para que a Confederação restituísse a quantia de R$526.785,69. Ainda assim, houve pedido de reconsideração por parte da CBT, diga-se por parte do réu JORGE, que apenas em maio de 2013 efetuou o pagamento, conforme admitido pela própria defesa em seus memoriais. Ora, os réus tiveram mais de um ano para corrigirem os problemas com a prestação de contas e os valores foram restituídos apenas quando nada mais havia a ser feito e mesmo assim após pedido de reconsideração, o que demonstra a clara intenção de encobrirem o desvio de recursos públicos e de não devolverem os valores desviados."
6. Intenção
Quando a juíza lista todas irregularidades – patrocínio privado omitido do Ministério do Esporte, contratação ilegal de intermediário, captação indireta realizada por particular, antecipação de pagamento, lucro e falsa prestação de contas -, ela conclui que é "impossível falar em crime culposo" ou seja, sem a intenção dos três.
"Ademais, a jurisprudência é firme no sentido de que o crime de peculato na modalidade desvio se consuma com a ação de desviar, ou seja, redirecionar as verbas públicas para finalidade privada, independentemente do proveito efetivo por parte do agente ou prejuízo para a vítima, tratando-se esta circunstância de elemento a ser valorado na dosimetria da pena. Todos os elementos examinados apontam que seria impossível a prática criminosa sem a participação dos três réus, sendo certo que a cada um deles cabia uma atribuição específica e cujo desempenho contribuía para o objetivo final, que era o desvio dos recursos públicos. Não há dúvidas também de que agiram com dolo na prática delitiva, sendo impossível se falar em crime culposo, posto que os três tinham pleno conhecimento do ilícito e a intenção de obter o resultado criminoso. Resumindo, a prova é sólida no sentido de demonstrar que foi praticada uma série de irregularidades desde o início da proposta realizada pela CBT até o final do processo de prestação de contas. Assim, houve patrocínio privado omitido do Ministério do Esporte, houve contratação ilegal de intermediário para a realização do evento, houve captação indireta realizada por particular, houve antecipação de pagamento vedada por lei, houve lucro e houve falsa prestação de contas com a apresentação de documentos que não retratavam a realidade, tudo com o objetivo de desviar recursos públicos da destinação para a qual o convênio foi firmado."
7. A pena
Jorge Lacerda e Dacio Campos foram condenados a um período de quatro anos de prisão em regime inicial aberto, substituído por serviços à comunidade. Além disso, ambos terão de pagar 80 dias-multa (cada dia-multa equivale a um salário mínimo, ou seja, um total de cerca de R$ 76 mil) e mais um salário mínimo mensal durante esses quatro anos a uma entidade com destinação social (cerca de R$ 46 mil). Caso uma dessa obrigações não seja cumprida, o benefício da reversão da prisão deixa de valer, e quem faltar com seu compromisso vai para a cadeia. A pena de Marzola é semelhante, porém mais branda: três anos, 45 dias-multa (cerca de R$ 43 mil) e um salário mínimo mensal a uma entidade com destinação social. Vale lembrar que a União foi ressarcida pela CBT com o pagamento de mais de meio milhão de reais em 2013. Ou seja, quem perdeu dinheiro de fato foi o tênis brasileiro.
"Diante do exposto, JULGO PROCEDENTE a presente ação penal, para: a) CONDENAR JORGE LACERDA DA ROSA e DACIO DE SOUZA CAMPOS NETO a cumprirem a pena privativa de liberdade de QUATRO (04) ANOS DE RECLUSÃO, no regime inicial aberto, a qual substituo pelas penas de prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas, nos termos do artigo 55 do Código Penal, e pela pena de prestação pecuniária consistente no pagamento da importância de um (01) salário mínimo mensal a entidade pública ou privada com destinação social, consoante acima explicitado, bem como a pagar o valor correspondente a OITENTA (80) DIAS-MULTA, com valor unitário de um salário mínimo, como incursos nas penas artigo 312, c.c. artigo 327, parágrafo 1º, e artigo 29, todos do Código Penal."
"b) CONDENAR RICARDO PINTO MARZOLA JÚNIOR a cumprir a pena privativa de liberdade de TRÊS (03) ANOS DE RECLUSÃO, no regime inicial aberto, a qual substituo pelas penas de prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas, nos termos do artigo 55 do Código Penal, e pela pena de prestação pecuniária consistente no pagamento da importância de um (01) salário mínimo mensal a entidade pública ou privada com destinação social, consoante acima explicitado, bem como a pagar o valor correspondente a QUARENTA E CINCO (45) DIAS-MULTA, com valor unitário de um salário mínimo, como incurso nas penas artigo 312, c.c. artigo 327, parágrafo 1º, e artigo 29, todos do Código Penal."
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