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Bournemouth 1968: o início do ano mais revolucionário do tênis

Alexandre Cossenza

28/11/2018 05h00

Não fosse proibido para tenistas profissionais disputar slams até 1967, é possível que o mundo reverenciasse Rod Laver como o melhor tenista de todos os tempos. Sem discussão. O canhoto australiano dominou uma década inteira. O Rocket não só fechou o slam de calendário em 1962, como amador, mas repetiu o feito em 1969, como profissional.

O segundo Grand Slam de Laver foi um tanto complicado. O tênis, afinal, viveu um período confuso quando se abriu totalmente aos profissionais. Foi a época em que deu para medir, finalmente, quem era melhor. Até então, havia a percepção de parte do público de que os profissionais jogavam exibições pagas e de que o nível do tênis amador era tão ou mais forte. Outros, por sua vez, ainda acreditavam na superioridade de gente como Rod Laver, Ken Rosewall, Fred Stolle, Roy Emerson, Pancho Gonzalez, Owen Davidson e outros que eram pagos por suas apresentações.

É sobre esse período que trago um relato do próprio Rod Laver, que descreve os primeiros dias do British Hard Court Championships, em abril de 1968, quando o tênis "aberto" nasceu.

Não era uma manhã muito agradável no West Hants Club, em Bournemouth, mas fez-se história quando John Clifton, amador, sacou para Owen Davidson, profissional, para iniciar esse duelo misto. Os tradicionalistas consideravam um cruzamento, uma mistura de champanhe e leite de magnésia. Clifton ganhou o primeiro ponto, num smash, mas Davidson venceu a partida. Parabéns para o representantes do leite de magnésia.

O público tinha cerca de 100 – 99 pessoas e um cão – mas o tempo era úmido e fechado. Mais tarde, melhorou, assim como o público, e não houve mais espaço para o cachorro. Uma pena por ele, porque não pôde ver o tênis memorável de Mark Cox, um canhoto britânico loiro e de cabelo cacheado que parecia uma versão atlética de Harpo Marx.

Cox avançou para a segunda rodada para jogar contra um homem lendário e simpático como o Monstro do Lago Ness: Pancho Gonzalez. … O primeiro set foi como Cox esperava: seis games seguidos para Pancho. Uma blitz. "Eu conseguia me imaginar perdendo por 6/0, 6/0 e 6/0 e estava incrivelmente preocupado", disse Mark. Suas preocupações começaram a diminuir quando ele soltou o braço, convencido de que em uma hora estaria empilhado na monumental pilha de vítimas de Pancho. Mas uma hora mais tarde Cox estava mexendo bem a bola – e Gonzalez. Por sua vez, Pancho, que não jogava uma partida de cinco sets há anos, estava sentindo suas pernas de 40 anos. Cox, no fim das contas, sobreviveu a uma última reação do Velho Lobo e uns ataques de raiva de Pancho para vencer em cinco sets: 0/6, 6/2, 4/6, 6/3 e 6/3.

Foi incrível. Havia um tenista na capa de cada jornal na Grã-Bretanha e em vários outros lugares. Mark Cox não recebeu o título de cavaleiro, ainda, mas tem seu pequeno lugar na história do esporte: foi o primeiro amador a bater um profissional. E que profissional! Gonzalez surpreendeu todo mundo ao deixar o vestiário inteiro. O ataque nervoso pós-jogo não aconteceu.

"Alguém tinha de ser o primeiro a perder, então podia muito bem ter sido eu. Este tênis aberto é um novo mundo, e estou feliz de ainda ser parte disto", disse Pancho.

Era mesmo um mundo novo, um mundo melhor, mas estranho para nós, profissionais cuja existência era limitada e encravada. Estávamos acostumados a enfrentar uns aos outros e ocasionalmente tínhamos torneios com 12 jogadores. Quase nunca jogávamos melhor de cinco e conhecíamos os golpes dos outros melhor do que um cara em Sing Sing conhece seu colega de cela. Rosewall e eu éramos os chefes. Gonzalez tinha seus momentos, e o resto sabia de suas limitações, embora o tênis fosse de primeira linha – "superjogadores", Allison Danzig, do New York Times, nos chamava. Jogávamos sério, sem dúvida, mas havia um ar de exibição na mente do público e não havia nada que pudéssemos fazer para mudar aquilo. Mas os abertos fizeram.

Imediatamente, a pressão estava em nós, profissionais. Nós éramos quem tinha que se provar depois de todos aqueles anos vivendo no submundo, longe dos eventos habituais. Havíamos ridicularizado os amadores e falávamos tanto sobre nós mesmos como uma superclasse que todos achavam que passaríamos por cima dos pobres amadores.

Não foi assim. No primeiro dia em Bournemouth, um nervoso Fred Stolle quase foi derrotado por um inglês chamado Peter Curtis. No dia seguinte, ele teve mais dificuldade ainda com um britânico menos ilustre, Keith Wooldridge. "Nós somos os caras com as malditas reputações a perder. Os amadores podem jogar soltos. Eles jogam pelas diárias e elas estão garantidas. Se eles perdem, não significa nada, mas se eu perco, é uma desgraça para a minha profissão."

Era esse o tipo de coisa que se comentava nos primeiros dias do desconhecido. Cox bateu Gonzalez e seguiu adiante para derrotar Emerson, que estava em seu primeiro ano como profissional. Ele deu a Emmo uma das maiores surras da vida: 6/0, 6/1 e 7/5. Esse era o mesmo Emmo que não teve problemas contra Cox alguns meses antes, quando os dois eram amadores. Mas ao vestir o rótulo de profissional, Emmo tremeu seriamente.

Nós, profissionais, estávamos abalados psicologicamente em Bournemouth, embora eu tenha derrotado Cox e avançado à final. Lá, Kenny Rosewall, adorando as quadras de saibro lentas, me destruiu: 3/6, 6/2, 6/0 e 6/3. Eu não joguei mal. De vez em quando, eu errava uma bola. Ele nunca errava.

Esse foi o início do ano mais revolucionário do tênis…

Notas do blog:

– O trecho acima, em itálico, foi retirado (em tradução livre) do livro "The Education of a Tennis Player", de Rod Laver e Bud Collins. É uma publicação fascinante para quem se interessa pela história do tênis, não só por descrever o cenário do tênis na década de 1960, com tantos personagens interessantes (Rosewall, Emerson, Gonzalez, Hopman, King, Wade, etc.), mas por levar o leitor pelos dois Grand Slams de Laver: 1962 e 1969. Aos interessados, a Amazon vende uma versão para Kindle – em inglês – por US$ 8,99.

– Vale a explicação: o British Hard Court Championships, em Bournemouth, era um torneio jogado em quadras de saibro, como é possível ver no primeiro vídeo deste post. Na época, britânicos e australianos chamavam esse tipo de quadra de "hard court". Apenas os americanos usavam "clay court" para as quadras laranjas, de pó de tijolo.

Sobre o autor

Alexandre Cossenza é bacharel em direito e largou os tribunais para abraçar o jornalismo. Passou por redações grandes, cobre tênis profissionalmente há oito anos e também escreve sobre futebol. Já bateu bola com Nadal e Federer e acredita que é possível apreciar ambos em medidas iguais.
Contato: ac@cossenza.org

Sobre o blog

Se é sobre tênis, aparece aqui. Entrevistas, análises, curiosidades, crônicas e críticas. Às vezes fiscal, às vezes corneta, dependendo do dia, do assunto e de quem lê. Sempre crítico e autêntico, doa a quem doer.