Topo

Saque e Voleio

Dos ensinamentos de Auschwitz até Atenas: Nicolás Massú e a história de dois ouros olímpicos

Alexandre Cossenza

19/09/2018 11h05

O chileno Nicolás Massú não foi número 1 do mundo e nunca venceu um slam, mas é o dono de um dos feitos mais espetaculares da história do tênis. Em Atenas 2004, foi campeão olímpico em simples e duplas. Jogou 11 partidas em oito dias. Salvou quatro match points no sábado, no jogo que valia o ouro de duplas, que acabou às 2h40min da manhã. Voltou à quadra no dia seguinte e conquistou as simples em uma partida de 4h. Foram os dois primeiros – e ainda são os únicos – ouros olímpicos da história do Chile.

Uma campanha ainda mais espetacular porque Massú, número 14 do mundo na ocasião, estava longe de ser um favorito às medalhas. Nas simples, chegou a Atenas vindo de nove derrotas seguidas em quadra dura. O chileno não havia vencido um jogo sequer na superfície em 2004. Nas duplas, jogaria com Fernando González, belo tenista, mas outro "simplista" que jogava do fundo de quadra. Em uma chave com Bob e Mike Bryan, Llodra e Santoro, Ancic e Ljubicic, Bjorkman e Johansson, Bhupathi e Paes, Black e Ullyett, Erlich e Ram, e Arthurs e Woodbridge, os chilenos eram enormes azarões.

Só que Massú nunca entregou os pontos em nada na carreira. Não era o mais alto (1,83m segundo o generoso site da ATP), o mais forte nem tinha um grande backhand. Corria muito e nunca desistiu. Sempre soube que correr atrás de uma bolinha de tênis estava longe de ser a tarefa mais dura da vida. Aprendeu a jogar assim porque foi levado ao esporte pelo avô que fugiu de Auschwitz para o Chile e começou a jogar tênis aos 40. Porque tem uma avó que ainda leva no braço um número de identificação tatuado em um campo de concentração nazista.

Hoje com 38 anos e atual capitão chileno na Copa Davis, Massú esteve em São Paulo no último fim de semana para disputar o 1º PRO-AM de Tênis JHSF, realizado pela Try. Estive no evento a convite da promotora e consegui bater papo com o campeão olímpico por 15 minutos. Na conversa, pedi que Massú falasse sobre seus feitos, mas especialmente por que eles foram possíveis. Ele lembrou da sensação antes daqueles Jogos de Atenas, da vitória sobre Guga na primeira rodada, de como jogou o US Open logo depois daquela conquista – e até das punições que recebeu do árbitro Carlos Ramos (sim, o mesmo português que trabalhou na recente final feminina do US Open).

Falamos também, é claro, de Copa Davis. Do que se perde e do que se ganha com o novo formato. E de como há muitos jovens com muito talento e muito dinheiro que se perdem durante a carreira. Massú diz muitas coisas interessantes. Sobre tênis e sobre a vida. Sou suspeito para opinar, mas acho que vale a pena ler do começo ao fim.

Você foi número 9 do mundo, ganhou duas medalhas de ouro olímpicas, conquistou seis títulos de nível ATP, jogou 15 finais, final de Masters 1.000, passou um ano e meio como top 20. O que te orgulha mais na carreira?

Bom, acho que me orgulho da carreira toda, completa. Acredito que independentemente de momentos que foram incríveis, outros que foram bons, outros não tão bons e outros ruins, tenho que agradecer por tudo. Fiz tudo com muito esforço, desde pequeno. Eu era um jogador muito disciplinado, com garra, muito lutador, então fico tranquilo de olhar para trás e fico feliz com tudo que fiz.

Quando pequeno, em Viña del Mar, alguém te inspirava?

Nessa época, quando eu comecei a jogar tênis, não havia um chileno nem alguém para eu olhar e dizer que comecei a jogar por ele. Depois, apareceu Marcelo Ríos, mas quando eu tinha 5 anos, 10 anos, Marcelo também não era profissional. Quando ele começou a aparecer, eu tinha 15 anos. Minha vida tenística não aconteceu por seguir alguém. Obviamente, eu via Boris Becker, Agassi, Thomas Muster, que foram os primeiros que vi internacionalmente.

No Chile, nenhum exemplo?

Em lugar nenhum. porque eu, quando comecei a ter ídolos como Agassi ou Becker, já jogava tênis. Meus ídolos começaram a existir quando eu tinha 11 anos. Foi quando me dei conta de quem eles eram. Mas quando tinha 5, não sabia que eles existiam.

E por que o tênis?

Por causa do meu avô. Meu avô começou a jogar tênis com 40 anos e levava eu e meu irmão para jogar. Aí comecei a jogar torneios, comecei a ganhar na minha cidade, depois no Chile, depois COSAT… E aí percebi o que era o tênis de verdade.

Li uma declaração sua em que você dizia que por seus avós terem vivido aquele horror de Auschwitz, você logo aprendeu que jogar tênis não é tão difícil assim. E você também diz: "meu avô me ensinou que até que se perca a última bola, o jogo não acaba"…

Isso é de personalidade. Não é somente pelo meu avô. Obviamente, que uma vivência de algo tão terrível da humanidade… É claro que desde pequeno vi o esforço de meus avós. Minha avó ainda tem o número aqui, marcado [aponta para o antebraço direito]. Obviamente, tenho sangue forte, mas tenho minha personalidade. Meus irmãos e meus primos também são netos do meu avô e não têm essa personalidade. São mais tranquilos. Eu cresci assim. Não sei jogar de outra maneira. Não gosto de perder. Quero fazer tudo direito e vivo o máximo em tudo que faço. Não entendo, até hoje, como há meninos com talento e que têm tudo – têm dinheiro, têm apoio, têm tudo – e não têm vontade de serem os melhores. Não entendo. Porque se querem se dedicar a outra coisa, perfeito, mas se estão metidos neste mundo do tênis, tão competitivo e tão curto – 15 anos, no máximo -, precisam tentar ser os melhores! Eu cheguei a ser número 9 do mundo, mas sempre quis ser o melhor. Sabia que era muito difícil, mas pelo menos paro agora, olho para trás e digo "foi isso que fiz". Não digo "ah, houve um tempo em que treinei 50%." Poderia ter sido melhor ou pior porque há momentos em que uma pessoa comete erros. Mas com erros, acertos e tudo, foi isso que fiz e estou tranquilo.

Queria que você falasse também um pouco sobre Atenas. Foi algo incrível, com tantos jogos e tantos momentos impressionantes… Há alguma parte específica daquela campanha que você gosta mais de lembrar?

Foram as duas semanas mais importantes da minha vida esportiva, de longe. Tive outros momentos ótimos, ganhando de jogadores importantes e fazendo uma final de Masters Series, jogando Copa Davis, ganhando ATP, levando a bandeira do Chile em Sydney 2000… São momentos de sonho, mas é algo diferente quando falo de Atenas. Eu diferencio assim: quando fui número 9 do mundo e ganhei torneios importantes, eu era alguém que fez algo importante no tênis. Quando ganhei duas medalhas de ouro, você passa a ser alguém importante no esporte. São duas coisas distintas. Sou o único tenista da história com duas medalhas de ouro nos mesmos Jogos Olímpicos. Muitas vezes, é difícil de acreditar nisso. Não fui o melhor jogador do mundo, não fui quem ganhou mais, não era favorito em Atenas… Então muitas vezes se pergunta: por que eu? Muitos jogadores tiveram carreiras melhores que eu e que não conseguiram algo assim. Então "por que eu?"

E por que você?

Muitas vezes, a resposta, acredito eu, é que uma pessoa precisa se sacrificar e estar preparada para quando o momento chegar. Sempre sonhei ganhar um grand slam, ganhar a Copa Davis, Jogos Olímpicos ou algo importante. E eu sabia que em algum momento da minha carreira uma dessas situações poderia acontecer. E acredito que cheguei jogando muito bem, com muita confiança e estava sempre muito preparado. Eu treinava muito. Eu sabia que quando todas as condições fossem favoráveis… Eu tinha que buscar a minha oportunidade, mas quando ela chegasse, eu tinha que estar preparado. Aconteceu em Atenas. O esporte é assim.

E foi incrível!

Eu me lembro que quando cheguei a Atenas, não tinha vencido nenhuma partida, o ano inteiro – o ano inteiro! – em cimento. Nenhuma! Perdi todas primeiras rodadas. Primeira na Austrália, primeira em Sydney, primeira em Cincinnati, primeira em Toronto, primeira em Indian Wells, primeira em Miami… tudo. Não havia vencido uma partida! Mas havia vencido Kitzbuhel no saibro. Ganhei do Gaudio na final. Ganhei do Schuettler. Estava jogando bem. Alguma coisa acontecia que eu não estava vencendo no cimento, mas estava jogando muito bem no saibro. Mas eu sabia que era questão de tempo. No ano anterior, fiz final do Masters de Madri, que era no cimento. E [em Atenas] tive uma primeira rodada com Guga. Duríssima. Joguei muito bem, e acho que essa partida foi chave. Me deu confiança. Ganhar do Guga… Não era o melhor Guga, mas era um jogador que estava 20 do mundo, e era o Guga! Essa partida me deu confiança, e aí começou.

Lembro que a final de duplas acabou quase às 3h…

Fernando [González] havia jogado quatro horas! Descansou 45 minutos e foi jogar mais cinco sets. Jogou oito horas seguidas! O que fizemos nessa semana com Fernando foi incrível. Muito difícil que aconteça outra vez. E terminaram os Jogos Olímpicos no domingo, segunda-feira estava no avião porque o US Open começava na semana seguinte. Eu tinha sete dias para esquecer aquilo. Tinha uma uma viagem longa até Nova York, havia aquela loucura no Chile, eu tinha entrevistas em Miami e tinha que ir a Long Island. Estava inscrito no torneio de lá e, pelo regulamento, tinha que ir até lá. Se não fosse, teria que pagar uma multa grande porque eu era cabeça de chave. Fui de Atenas a Long Island só para assinar um papel. Fui para Nova York, dormi e fui a Miami porque o programa mais importante da TV chilena precisava ter Fernando e eu na quarta-feira. Fomos a Miami e ficamos de terça a quinta. Voltamos a Nova York. Era uma loucura. Todo mundo ligando, o estresse daquilo tudo, e a três dias de jogar um slam. Terminei bastante estressado. Ganhei a primeira rodada do Acasuso e na segunda rodada perdi a segunda partida mais longa da história do US Open [na época] para o Sargis Sargsian [o jogo durou 5h09min]. Eu estava muito tenso. Eu me comportei muito nervoso. Carlos Ramos arbitrou.

(Risos de ambos)

Ele me tirou um ponto, me tirou um game. O mesmo. O mesmo que Serena.

Mas o que você fez?

Eu… Eu tive razão na última, e ele teve razão nas duas primeiras. Foi um jogo de 5h, eu tive match point aqui [aponta para o forehand] para fazer a passada e mandei a bola na rede. A partida se complicou, quebrei uma raquete, depois quebrei outra e me tiraram um game. Eu estava estressado. Muito tenso. Eu achava que o torneio podia ser algo importante, perdi o controle dentro da quadra. Não estava tranquilo. Mas tudo bem.

E hoje, mais experiente, como é ser capitão de Copa Davis?

Incrível! Incrível porque, para mim, Copa Davis reúne tudo que há de melhor. O que mais sinto falta no tênis é competir pelo Chile porque sempre joguei muito bem pelo país, sempre me entreguei, e a diferença agora é que não sou eu jogando os pontos, mas jogo as partidas junto com meninos, eu adoro.

Fica mais tenso hoje?

É diferente. Outro tipo de nervosismo. Quando você está jogando, tem as sensações, sabe o que tem que fazer, mas quando está fora, é diferente. Não tenho problema em me adaptar.

E como vê as mudanças aprovadas para a Davis?

Qualquer mudança que exista, na vida ou no esporte, é preciso vivê-la primeiro. Não posso falar antes que aconteça. Há coisas que vamos ganhar e outras que vamos perder. Vamos perder que os tops vão deixar de ir a países como o Brasil. Antes, você poderia ter Roddick ou Isner no Brasil. Isso era diferente, sobretudo em países que não tem torneios. O Brasil tem o 500 do Rio, mas em outros países, era uma chance única de receber jogadores top. Isso não vai mais acontecer. Isso se perde. Esse sabor não volta. O que se ganha? Que os tops certamente vão jogar mais. Há mais dinheiro, os jogadores seguramente vão querer jogar. É mais fácil porque é só uma semana, com jogos de três sets, então eles jogam. Isso é o positivo. Agora… Se você me pergunta se é mais positivo ou negativo, é preciso experimentar as mudanças. Para mim, a Copa Davis existiu sempre nesse formato antigo. Eu não sei vivê-la de outra maneira. Eu sou dessa época. Mas se passam dez anos, e isso [formato novo] se mostra espetacular, vou dizer que foi uma boa mudança. Ou, daqui a 10 anos, posso te dizer que foi uma mudança ruim. Não sei dar uma resposta hoje. É uma questão de sentimento, de coração. Eu vivi isso. Mas não sei se vai ser melhor ou pior.

Sobre o autor

Alexandre Cossenza é bacharel em direito e largou os tribunais para abraçar o jornalismo. Passou por redações grandes, cobre tênis profissionalmente há oito anos e também escreve sobre futebol. Já bateu bola com Nadal e Federer e acredita que é possível apreciar ambos em medidas iguais.
Contato: ac@cossenza.org

Sobre o blog

Se é sobre tênis, aparece aqui. Entrevistas, análises, curiosidades, crônicas e críticas. Às vezes fiscal, às vezes corneta, dependendo do dia, do assunto e de quem lê. Sempre crítico e autêntico, doa a quem doer.