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Saque e Voleio

Nick Kyrgios e o dilema do 'não sei'

Alexandre Cossenza

31/08/2017 00h03

Os trechos abaixo, em tradução livre, foram retirados da entrevista coletiva cedida por Nick Kyrgios nesta quarta-feira, após ser eliminado do US Open pelo compatriota australiano John Millman. Kyrgios sentiu dores no ombro direito no meio do terceiro set e não conseguiu competir mais. O placar final mostrou 6/3, 1/6, 6/4 e 6/1.

O que aconteceu no terceiro set?
Eu não sei.

Qual foi o diagnóstico preliminar?
Eu saí da quadra 15 minutos atrás, eu não sei.

Você vai fazer…
Eu não sei.

O quanto isso te preocupa?
Eu não sei. Eu tive um ano dos infernos nos slams. Não me surpreende. É a história da minha carreira, Eu vou ter boas semanas, eu vou ter semanas ruins. É uma montanha-russa.

Você tinha uma parceria com Sebastien [Grosjean] até este torneio. Você acha que vai continuar trabalhando com ele ou o que vai acontecer de agora em diante?
Eu não sei, honestamente. Não sou bom o bastante para ele. Ele é muito dedicado. É um técnico inacreditável. Ele provavelmente merece um jogador mais dedicado ao tênis do que eu. Ele merece um atleta melhor do que eu.

De que modo você não é bom o bastante para Sebastien?
Não sou nem um pouco dedicado ao tênis. Ele me ajudou muito, especialmente nos treinos. […] Há outros jogadores por aí que são mais dedicados, que querem melhorar, que lutam por isso todo dia, que buscam esse 1%. Eu não sou esse cara.

Você imagina que um dia pode ser assim?
Eu não sei. Sempre me perguntam isso – eu não sei. Eu realmente não sei. Provavelmente, não, para dizer a verdade.

Você gostaria de ser tão dedicado um dia?
Eu não fiz nada de diferente em Cincinnati. Eu fui provavelmente menos dedicado do que nesta semana. Eu estava jogando basquete na Lifetime Fitness duas horas por dia. Eu joguei uma hora de basquete antes de jogar contra o David Ferrer na semifinal. Eu estava tomando sorvete […[um milk shake todo dia. Eu fui menos dedicado. E nesta semana eu estava me dedicando, e meu ombro começa a doer. Eu não sei.

Qual o tamanho da sua preocupação com o fato de seu corpo continuar a falhar em momentos importantes? Você pensa em tirar uns dias de folga para pensar?
Eu não sei. Eu não sei. Continuo decepcionando as pessoas, então eu não sei. Eu realmente não sei.

Em sete minutos e meio de entrevista, Kyrgios disse "eu não sei" 15 vezes. Ainda que com o desconto que merece alguém que acaba de sair da quadra frustrado, não há como abordar a questão de outra maneira. O talentoso australiano realmente não sabe. Por mais que seu talento tenha lhe colocado no top 20, existe um limite para o que se pode alcançar – em qualquer área – quando o cidadão são tem noção do que quer. Kyrgios, aliás, não sabe nem SE quer. E por mais habilidoso que alguém seja, ninguém chega a algum lugar se começa uma jornada sem destino.

Por enquanto, Kyrgios vai aproveitando e curtindo o circuito. Num dia, derrota Rafael Nadal num Masters 1.000. No outro, sofre uma lesão e perde para John Millman num slam. Enquanto isso, toma sorvetes, curte festas e joga basquete. E que ninguém pense que este post tem a intenção de julgar o australiano. Pelo contrário. Cada um tira o que quer do circuito e não precisa se sentir obrigado a dar satisfação a ninguém.

Nalbandian, meu tenista preferido nos últimos 10 anos, curtia seus asados e aparecia para jogar quando e onde queria. Podia derrotar Del Potro, Nadal, Djokovic e Federer em rodadas consecutivas (e isso aconteceu!), mas também podia perder numa primeira rodada de slam para Frank Dancevic (o que também aconteceu).

O que se lamenta – e muita gente lamenta – é que Kyrgios poderia ser muito mais. Não só em resultados, mas como atração. Mesmo sem um grande título no currículo, o australiano e seu jeito peculiar lotam quadras de treino, atraem público e levam mais gente ao tênis. Seja discutindo com árbitros ou batendo bola com alguém que pediu no Twitter, seja ganhando um jogo grande ou perdendo uma partida ganhável, Kyrgios gera assunto (você, afinal, está lendo este texto!). Seria fantástico se um dia seus resultados se equiparassem ao nível desse magnetismo. Mas será que vai acontecer?

Eu não sei.

Coisas que eu acho que acho:

– Não é um comentário relacionado diretamente a Kyrgios, que está em outro nível, mas vale apontar que o aumento de premiação nas primeiras rodadas de slam, ainda que justo (os slams faturam fortunas e tinham mesmo que dar aos jogadores uma fatia maior da pizza), vem trazendo uma consequência nefasta: o grupo de tenistas que entram num torneio sem pretensão alguma de ir à segunda rodada.

– A matemática é simples. Um tenista gasta, no máximo, US$ 2 mil de passagem aérea (de qualquer lugar do mundo), fica hospedado de graça enquanto estiver vivo no torneio, ganha diária de alimentação, tem transporte gratuito e, mesmo que jogue um set só e abandone, embolsa US$ 50 mil no US Open. E isso vale tanto para os lesionados (tipo Tursunov, que embolsou uma grana enorme só usando o ranking protegido – vide tweet acima) quanto para os que "apenas" estão destreinados e/ou desinteressados.

– Uma consequência mais nefasta ainda pode ser o surgimento de uma geração inteira de meninos talentosos, mas desinteressados em ir longe. Não é o caso da #NextGen (os bons e ambiciosos logo se separam do resto), mas pode ser o caso de muita gente que vai se contentar em ficar ali entre 60-90 do mundo, mesmo com tênis para ir muito mais longe. Basta conseguir ótimos resultados em umas três semanas por temporada para se manter ali, o que não é nada ruim financeiramente.

– Quem fica nesse grupo tem vaga garantida nos quatro slams, o que assegura pelo menos uns US$ 150 mil no bolso anualmente (sem contar patrocinadores, bônus por aparições, prize money em chaves de duplas e duplas mistas, além de prêmios de torneios menores). E que pessoa não vive bem, em qualquer lugar do mundo, com um dinheiro desses?

– Alexander Zverev, o top 10 que nunca passou das oitavas em um slam, fez uma péssima estreia contra o pouco perigoso Darian King e sucumbiu hoje, dois dias depois. Nem foi uma atuação tão ruim do alemão, mas Zverev deixou a desejar contra o super sólido Borna Coric. Agora, com o cabeça 4 eliminado, um semifinalista sairá do grupo que tem Querrey, Albot, Mischa Zverev, Isner, Fabbiano, Lorenzi, Anderson e Coric. Em quem vocês apostam, hein?

Sobre o autor

Alexandre Cossenza é bacharel em direito e largou os tribunais para abraçar o jornalismo. Passou por redações grandes, cobre tênis profissionalmente há oito anos e também escreve sobre futebol. Já bateu bola com Nadal e Federer e acredita que é possível apreciar ambos em medidas iguais.
Contato: ac@cossenza.org

Sobre o blog

Se é sobre tênis, aparece aqui. Entrevistas, análises, curiosidades, crônicas e críticas. Às vezes fiscal, às vezes corneta, dependendo do dia, do assunto e de quem lê. Sempre crítico e autêntico, doa a quem doer.