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André Ghem, comentarista e técnico: "Cansei de sentir dor"

Alexandre Cossenza

03/10/2019 04h00

André Ghem ainda não cruzou a linha de chegada, mas depois de quatro anos brigando contra uma lesão no cotovelo, a bandeirada está mais próxima. Nada que assuste o gaúcho de 37 anos. A experiência e uma visão abrangente do circuito lhe abriram portas, e foi sobre isso que conversamos nesta semana, durante o Challenger de Campinas.

O veterano, que ainda não pendurou as raquetes e jogou duplas no evento paulista, falou sobre seus dois anos como comentarista da ESPN e as peculiaridades da função; revelou a parceria com o conterrâneo Guilherme Clezar, de quem será treinador pelo menos até o fim do ano; e abriu o jogo sobre a relação intensa que teve com a dor enquanto conviveu com o cotovelo lesionado e a impossibilidade de competir da melhor maneira.

Como em todo papo com o Alemão, a conversa foi longa e saiu dos tópicos originais. Logo, estávamos falando sobre Andy Murray, empatia, vitórias, derrotas, ego, pressão, ranking, hierarquia e um punhado de outras coisas que envolvem a carreira de um tenista e suas sensações. Foi outra entrevista que adorei fazer, e espero que vocês curtam rolar a página pelos próximos minutos.

Quando você estreou na ESPN mesmo? Ano passado?

Ano passado. É o meu segundo ano de contrato. Diferente, já habituando bastante. É uma coisa que eu gosto de fazer. Gosto bastante. Acho legal, não acho tão fácil quanto parece. Às vezes, as pessoas acham que é só chegar ali… Na ESPN, as pessoas que trabalham lá têm uma preparação enorme. Se tu tá em casa assistindo, tu não vê a preparação dos caras para isso… Tem sido um aprendizado muito grande. Estou curtindo.

Lembra da primeira transmissão?

Foi [no ATP de] Brisbane, ano passado. A primeira transmissão eu fiz com o [Fernando] Nardini. Depois, na maioria das transmissões, a minha dupla era o Cledi [Oliveira], que é um cara que vem da rádio. Ele não é muito familiarizado do tênis.

Em rádio, eu acho ele sensacional.

Esse é o ponto que eu queria chegar. Pra mim, o grande lance da ESPN é que eu trabalhei com muita gente diferente… Claro, o Nardini é um cara que eu sou fãzaço, é um cara que tem uma sensibilidade muito grande, é um cara que começou a jogar tênis. O Fino passou muita coisa pra ele, mas é um cara que aprende muito rápido e pega muitas coisas do tênis por ele estar mais no esporte, por ele praticar. Só que por outro lado, os profissionais que trabalham lá… Os caras são muito bons, mas nenhum do tênis. E tu acaba aprendendo muita coisa do outro lado. Isso aí, às vezes, acaba te dando uma bagagem melhor, e isso tem sido muito bom.

O que te surpreendeu nas primeiras transmissões?

Acho que a velocidade. A gente está acostumado a comentar um lance ou outro quando tu assiste uma partida, mas ali precisa comentar mais, externar mais as coisas e, às vezes, tu tem muita coisa na tua cabeça, mas não bota pra fora. Ali, é o contrário: tu precisa botar pra fora tudo isso. É uma coisa bem interessante e é legal, só que o cara precisa estar sempre… pum! Jogando isso para fora.

Isso também é a parte mais difícil?

Eu não acho que seja… Eu vou te dizer assim: eu acho o maior desafio é tu ter precisão não nos comentários, mas nas outras informações. Isso aí é uma coisa que é a parte legal da ESPN, de tu ver os caras e como eles se esforçam. Eles não são do tênis, mas estão preocupados em 'colocar a bola no meio da quadra e não errar', entendeu? Desde que eu iniciei a minha caminhada ali, eu já criei essa preocupação, então já me preparo muito melhor para as coisas, estou sempre com várias coisas na cabeça. Tipo: saiu a programação, eu já dou uma checada… Eu gosto. E, cara, eu estou nesse meio, jogo tênis há 33 anos, sabe? Eu já vi muita coisa, então assim… Não tem uma parte mais difícil. O negócio é ser preciso na informação que tu passa. É não errar… Tipo pô, se 'o cara ganhou três torneios', o cara tem que ter ganho três torneios. Se o cara foi 50, ele tem que ter sido 50, não pode ter sido 70 ou 40 ou 30. Isso aí é a credibilidade, é a hora que tu não pode errar. Tem que tomar cuidado porque de repente tu tá falando muita coisa e, daqui a pouco, pum: você se coloca naquela sinuca. Tem que ter esse cuidado pra não se colocar na sinuca porque de repente tu tropeçou sozinho numa coisa que não precisaria.

Uma coisa que eu senti nas poucas vezes que fiz isso é que não é tão fácil você falar num espaço curto de tempo porque o público brasileiro tem essa peculiaridade de não gostar de ouvir comentário durante o ponto. Você sentiu isso também?

Eu sempre tive esse cuidado de tentar não invadir os pontos. Claro que existem partidas, assim, que às vezes são menos atrativas para o público, e eu não tenho essa preocupação. Eu prefiro bancar essa de 'o que eu tô falando é muito mais interessante que o ponto que está acontecendo agora', entendeu? Eu vou muito por essa linha. O que eu acho que acontece ali é não ter um feedback. Às vezes, tu acaba não escutando nada da parte deles, sabe? No começo, assim, tem essa insegurança de 'será que eu tô agradando?', entendeu? Mas se me chamaram pra fazer de novo, acho que é por aí. É muito de cada um, não fico muito pensando se estou fazendo bem, se estou fazendo mal. Estou fazendo o que eu acho que é certo, e é por aí que eu vou.

O que você acha que faz muito melhor hoje do que no primeiro dia?

Eu vou mais direto ao ponto, eu acho. Às vezes, o cara acaba querendo preencher mais o espaço, e tu acaba fazendo uma volta que não precisa. Às vezes, para ser preciso não precisa falar tanto, mas ser mais direto. Isso aí faz uma diferença. Tem vezes que eu preciso ser mais direto, um pouco mais curto, focar naquilo ali e pronto.

O quanto isso entra nos planos do que parece ser o início do fim da sua carreira? E aí eu quero entrar nessa questão da dupla também (Ghem disputou a chave de duplas em Campinas ao lado de Clezar).

Eu estou até com alguns outros projetos já e tudo. Já venho vivendo isso desde que comecei a sentir a lesão no cotovelo. Para mim, realmente foi uma coisa que demorou muito, me custou muito pra recuperar. Hoje, eu não tenho dor no cotovelo, mas venho desde 2015, talvez, com uma dor insuportável. Isso me custou muito tempo, sabe? Automaticamente, tu vai… Eu já me conheço muito bem, sei como meu corpo funciona. Por mais que não queira falar sobre isso, tu já entende… Eu estou me aproximando do fim. Eu tinha uma ideia de tentar focar um pouco mais nas duplas, mas hoje em dia já é uma coisa que… Estou com outros planos.

Eu ia perguntar isso porque – talvez não numa entrevista – mas você já tinha comentado comigo sobre jogar mais alguns anos só nas duplas…

É uma coisa que me passava mais pela cabeça. Hoje em dia, não tenho mais esse peso. Este ano, joguei Interclubes na Alemanha, joguei uns torneios de grana, joguei muito bem, comecei a me sentir melhor, mais confortável na quadra – simples e dupla. Ganhei ótimos jogos, ganhei de caras 350 do mundo, foi muito bom, mas assim… Foi bom, tá bom. Não quero mais, assim, muito pelo medo de me machucar mais, cara. Eu cansei de sentir dor. Este ano, teve uma situação assim: quando teve o Australian Open, que o [Andy] Murray jogou e deu aquela entrevista… Eu me identifiquei muito no sentido de que… cara, quando tu sente uma dor, quando tu tem uma limitação assim, no fim das contas, por maior que seja o seu estafe, é só tu que sente dor. Ninguém mais sente dor. É tu que leva o braço, é tu que leva o quadril pra academia, pro treino, que dorme. Quando tu tá dormindo lá, não tem ninguém contigo. E tu tá lá e tá sentindo dor e aquilo tá martelando na tua cabeça.

A gente vê a sua dor na quadra, mas você sente isso quando escova o dente, quando levanta um copo pra tomar água…

Exatamente. As pessoas não entendem isso, entendeu? E às vezes o cara fica muito abandonado, tu te sente muito sozinho e quando tu externa isso, tu acaba trazendo uma empatia maior das pessoas. Tinha muita gente que não era fã do Murray que acabou ficando simplesmente por toda a situação que se criou, da maneira que ele botou isso pra fora e tal. E assim… Eu vivi muito isso e nunca tentei dar desculpa. Acho que no momento que tu entra na quadra…. Eu perdi jogos que eu não tinha a mínima condição, que eu não vi o adversário do outro lado da quadra porque não estava jogando contra ninguém. Estava eu tentando passar por uma barreira que, putz, eu acreditava que poderia passar, mas não passava. Pra mim, não é vergonha entrar e perder. Eu tentei o meu máximo, não consegui dar mais que aquilo ali, mas foi isso aí. Eu sempre tentei manter essa postura durante a minha carreira inteira. Hoje, não está dando mais. Tá bom, tá ótimo. Aproveitei o tempo que foi. Foi do caralho e tudo, mas é assim. A vida é assim. Hoje eu tenho 37, já não recupero. Jogo um jogo, beleza. No outro dia, talvez eu tenha mais dor e no outro dia eu não quero mais forçar tanto porque eu vou me arrebentar e eu sei disso, entendeu? Então a dupla já deixou de ser a minha prioridade porque, querendo ou não, exige disciplina, precisa abrir mão de muita coisa, precisa ter uma rotina mais regrada e tudo, e hoje em dia eu tenho uma rotina um pouco diferente. Já assumi outros compromissos que eu acho que também é um pouco de aposta minha pessoal nesse lado…

Pode falar que compromissos são essas?

Estou com o [Guilherme] Clezar agora, a gente assumiu essa parceira este ano. Se tu me perguntasse isso há três meses, 'Alemão, tu quer ser treinador?', eu ia dizer 'cara, não quero ser'. Como eu estava na Europa, surgiu a oportunidade. Eu sou muito amigo dele, a gente é de Porto Alegre, já se conhece há bastante tempo, e ele me convidou. Obviamente, eu acompanhava ele de longe, sabia que os resultados dele não vinham sendo bons, mas eu sei o tênis que ele joga e sei que ele é capaz, claro, se fizer algumas mudanças. E a gente começou a trabalhar, a gente viajou três semanas na Europa, e deu certo. Ele começou a ter resultado já na primeira semana que a gente começou a viajar. Ele ganhou de um top 100, do Dzumhur. E assim, bom, bora tentar. A gente fechou até o final da temporada. Três semanas atrás foi a primeira semana em Porto Alegre, a minha oficialmente como treinador, e eu acredito muito no potencial dele, mas, claro, tênis não tem uma fórmula de sucesso. Então tem muito disso: nesse cavalo, eu quero apostar, entendeu? É nessa que eu entrei agora e estou bem focado nesse objetivo aí.

Você falou algo sobre o Murray que eu acredito muito, que é como ele gerou empatia. Talvez seja da natureza do tênis de o atleta ser muito introspectivo, de não falar quando está perdendo, quando a coisa está ruim, e eu sempre acredito que, do ponto de vista do jornalista, é justamente nessa hora que o cara deveria falar porque o público precisa saber que o cara está puto, chateado, o que está sentindo… Gera empatia. Não só no tênis. O público, de modo geral, se identifica quando o atleta está num momento de briga com ele mesmo, quando as coisas não estão dando certo e ele mostra que quer que dê certo, mas não está rolando.

É que assim: existem situações diferentes. No caso do Murray, é por lesão, sabe? Tênis é um esporte individual, e o negócio do individualismo é aquela coisa assim de o cara não querer demonstrar fraqueza, de não externar fraqueza. A defensiva dele é o ataque, então se usa muito isso. Só que também tem o outro lado, assim, que tênis, esse negócio de ganhar e perder, mexe muito com a vaidade das pessoas. Eu, para mim, o cara que é vaidoso nesse sentido acaba se complicando. No momento que tu não carrega esse peso, é muito mais fácil. Na minha carreira, eu tentei deixar sempre isso pra trás. Quando eu jogava com brasileiro, eu jogava bem porque não tinha medo de perder pro cara. Por quê? Qual é o problema de perder pro cara? Não posso perder? Quem entra na quadra ali pode ganhar ou perder, só que quando tu carrega esse peso, talvez tu não tenha teu melhor rendimento. Tu não rendendo bem, talvez a derrota aconteça, entendeu? São coisas que você aprende. Eu aprendi a ver dessa forma. É muito mais fácil jogar na Europa? Com certeza! Não tem ninguém olhando pra te criticar. O mundo é silencioso lá. Só que quando tu vem aqui, é outra realidade. O mundo é muito mais barulhento, se escuta muito mais coisa. No momento que tu consegue separar isso, a vida dentro da quadra é mais fácil. Tu vai ali, tu não tá enfrentando o cara que tá, sei lá, duas posições na frente no ranking. Não tem isso. Quando tu consegue deixar isso de lado, a vida é mais fácil. O que eu acho que é tão interessante do tênis é que existem inúmeras coisas que tu pode tropeçar ou passar adiante. Quando tu começa a passar adiante por essas coisas, talvez o teu nível de tênis evolua, talvez como pessoa tu evolua.

Vou levar o papo um pouco mais longe porque você levanta uma coisa me faz perguntar outra. Saindo um pouco do tópico, você falou de vaidade. Tem muito isso no tênis, entre vocês tenistas, de respeitar mais a opinião de um cara porque ele foi 100 e não 200 e etc.?

Ah, sim, sem dúvida. Isso aí não se muda, claro. É assim, né? Porque querendo ou não, quanto mais longe tu foi, mais lições tu aprendeu, mais barreiras tu ultrapassou. No final das contas, ganhar jogo não é fácil. Se manter ganhando também não é fácil. Tem inúmeras coisas, só que assim: tem gente que não carrega, mas que deixa isso muito mais externado do que outros. Obviamente que a opinião de um às vezes vale mais do que a do outro, com certeza, mas assim: filtra e tu entende o que tu quiser. Cada um vai pegar a linha que quiser. Tem gente que: 'Ah, não, o cara é um arrogante!' Mas chega lá primeiro, entendeu? Porque assim: o tênis é um negócio que quanto mais longe se vai, mais ocupado o cara fica. Acaba tendo mais compromissos, mais coisas, ou seja, tem mais distrações também. Outros tipos de problemas para resolver. Mas, no final das contas ali, mexer as pernas todo mundo precisa, agachar, fazer a terminação nas bolas… Isso sempre vai ter, e o tênis… Uma coisa que eu sempre digo – sempre digo, não! Comecei a dizer! Uma coisa que eu vejo que acontece muito no tênis é que a tua vida nunca vai ficar fácil. Por mais que você esteja 100 do mundo, vai ter nervosismo pra entrar na quadra, o cara que tu vai enfrentar na primeira rodada vai ser o cara que tu não quer jogar. Constantemente, tu tem que provar alguma coisa, superar isso. Não vai mudar nunca. A gente vê assim: o Thiem vai jogar um torneio, ele pega um cara que ele odeia na primeira rodada, e tu diz assim: 'O cara é 4-5 do mundo, tem uma carreira consolidada, um monstro', só que ele tá com a pedrinha no sapato dele que vai precisar passar por isso de novo. E isso não vai mudar nunca.

Proporcionalmente, é a mesma coisa do cabeça 1 que joga aqui em Campinas e pega um cara que sai do quali, mas ele odeia enfrentar?

Isso aí, isso não muda. Do 1000 ao 100, vai ser sempre assim. 'Mas o head-to-head dos caras é assim.' Pois é, mas o cara está lá e tem que remar. Por isso que essas atitudes são muito importantes pra conseguir passar por esses obstáculos. A diferença, às vezes, não é o nível de tênis. É a maneira como a pessoa entende as outras coisas que vai fazer diferença dentro da quadra.

Pra terminar, a dupla com o Clezar é pontual. Não podemos esperar você jogando mais, aqui e ali, então?

É uma soma de fatores. Neste momento, é pontual. Não descartei ainda essa possibilidade. Como a nossa base é em Porto Alegre, a gente não tem muitos jogadores, e eu gosto de entrar e estar na quadra, acho que batendo pra ele acaba sendo um desafio grande pra ele treinar comigo nesse sentido. Eu tenho contrato na Alemanha para jogar ano que vem na segunda Bundesliga, é bem duro o nível dos jogos, então tenho que me manter a forma, padrão e tudo. Mas assim… A gente nunca sabe o dia de amanhã, né? Campinas é um lugar em que eu sempre joguei bem, eu já fiz final, fiz semi, fiz várias quartas, sempre ganhei jogos aqui. É um lugar onde tenho muitos amigos. Infelizmente, a gente tem [só] um torneio no Brasil assim, entendeu? Eu gostaria de estar jogando simples aqui. Devido ao US Open, eu não consegui treinar nas duas semanas ali, e o cara fica atolado de trabalho. Fiz um pouco de físico, mas me tirou um pouco da forma que eu vinha na metade do ano, de jogar simples. E como a gente vem trabalhando várias coisas, eu acho que é legal também, para a nossa parceria, a gente poder compartilhar a quadra, que é uma coisa muito legal… E também tem algumas pequenas coisas, que fazem a diferença. Só de chegar a programação no teu celular de novo, assim, é uma coisa legal. Tu já sente algumas coisas legais, que fizeram parte da minha vida durante um tempo, e que às vezes o cara não valoriza. Isso aí são as pequenas coisas que são legais. Por enquanto, vamos aproveitar aqui. Depois, a gente vai ver o que vai acontecer pro ano que vem, se a gente vai continuar junto, se os resultados vão vir, mas pretendo me manter em forma, continuar treinando – talvez não tanto quanto quando eu jogava simples, mas pretendo estar sempre na quadra quando eu puder.

Sobre o autor

Alexandre Cossenza é bacharel em direito e largou os tribunais para abraçar o jornalismo. Passou por redações grandes, cobre tênis profissionalmente há oito anos e também escreve sobre futebol. Já bateu bola com Nadal e Federer e acredita que é possível apreciar ambos em medidas iguais.
Contato: ac@cossenza.org

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