Topo

Saque e Voleio

João Sorgi: uma aula de tênis e uma lição de vida na Nigéria

Alexandre Cossenza

27/06/2019 04h00

Há pouco mais de um ano, João Pedro Sorgi foi um surpreendente herói brasileiro na Copa Davis, evitando o que seria uma vexaminosa derrota diante da fraca (além de desfalcada) República Dominicana. De lá para cá, a vida tenística do paulista de 25 anos não foi fácil. As vitórias escassearam, e seu ranking, #365 na época, despencou para o atual 625º posto.

Por outro lado, se não houve tanto a comemorar em pontos, Sorgi pode dizer que viveu um dos momentos mais marcantes de sua vida este ano, em abril, quando deu uma pequena "aula" para crianças carentes da cidade de Abuja, na Nigéria, onde disputava um torneio. Uma experiência inesquecível e gratificante que o tenista relatou quando conversamos durante o ITF WTT de Curitiba, onde estou a convite do Instituto Sports.

Sorgi lembrou do momento com alegria e brilho nos olhos. No papo, também conversamos sobre seu momento heroico na Copa Davis, sua queda no ranking e seu momento financeiro. Economizar é preciso, e Sorgi, que reconhece ser um privilegiado por ter tanto apoio dos pais, até precisou colar uma raquete com super bonder aqui em Curitiba – algo que, acreditem, já aconteceu mais de uma vez em sua carreira. Leiam!

Seu ranking hoje está por volta de 640. Naquele confronto da Copa Davis contra a República Dominicana, você era #365. O que aconteceu de lá para cá? O que deixou de funcionar?

No momento que eu fui convocado para a Davis, eu estava começando a ter uma pequena baixa no circuito ATP. Eu tive seis meses antes da Davis no melhor momento da minha carreira, eu cheguei à final do Challenger [em Savannah, nos EUA], tive meu melhor ranking também (#251) e após esse momento eu fui jogar alguns Challengers na Europa e acabei ficando fora das chaves principais. Tive que disputar os qualificatórios e não tive resultados tão bons. Comecei a passar por um momento de dificuldade, de dúvida, de baixar a confiança. No fim do ano, o João [Zwetsch, então capitão brasileiro na Davis], eu tive essa oportunidade de jogar, de ser convocado, que foi incrível, uma oportunidade única. Fiquei muito honrado e muito feliz. Ter essa oportunidade me deu uma levantada muito grande, foi muito bom para mim, e a semana, a experiência e a convivência com a equipe… O circuito é muito individualista. Você enfrenta suas dificuldades sozinho, apesar de você ter sua equipe, mas é diferente. O clima da Davis é diferente, e eu gostei desse clima de equipe. Fui muito acolhido. O comprometimento de todos foi realmente incrível. Todas essas coisas me comoveram e eu fiquei muito envolvido com tudo isso que aconteceu na semana [Sorgi venceu o quinto e decisivo jogo, dando a vitória ao Brasil sobre a República Dominicana]. Acabei jogando muito bem, me sentindo muito bem para competir. Você está jogando não por si, mas por você, pelo país. Uma honra, bens maiores, essas coisas todas me deram uma força muito grande para jogar bem.

Foi a melhor semana da sua carreira? Não digo tecnicamente, mas emocionalmente…

De emoção, com certeza foi a melhor. E também a experiência de ter jogado – e não só jogado porque eu tive a felicidade de dar o ponto decisivo para o Brasil. Foi a maior emoção da minha carreira, com certeza. Foi um momento muito especial para mim e logo depois eu tive outra oportunidade, na Colômbia, em que eu também joguei o ponto decisivo, apesar de que dessa vez a gente saiu com a derrota. Foi uma experiência tão boa quanto a da dominicana. Fiquei contente com a minha postura em quadra e meu envolvimento com a equipe porque eu acho que isso é o primordial. O resultado a gente nem sempre consegue, então foram duas experiências muito boas. Voltando ao circuito, não fui capaz de conseguir manter esse nível, essa confiança e autoestima que me trouxeram essas semanas de Copa Davis. Tive um ou outro resultado, mas não consegui manter uma constância grande e aí acabou que o meu ranking começou a baixar e estou desde então, já tem um ano, ano e pouco, tentando reencontrar esse meu melhor nível, essa confiança ideal, lidando com todas essas dificuldades e dúvidas e buscando me reencontrar em quadra.

Na virada de ano, você acabou ganhando algumas posições por causa da mudança no sistema de ranking (a ATP deixou de contar pontos conquistados nos Futures de US$ 15 mil, entre outras mudanças). Subiu de #697 para #625. Essa mudança fez muita diferença para você?

No meu caso, a mudança foi pequena. Nessa faixa de ranking, não muda muito porque você não consegue entrar em Challengers. Agora já não existem nem mais os qualis. Na verdade, são qualis com quatro vagas, então é praticamente inexistente. Então não foi possível com essa mudança eu conseguir jogar os Challengers. Ficou na mesma. Eu tive que jogar os Futures e buscar agora a pontuação necessária para voltar os Challengers através dos Futures. Ficou um sistema bem complicado, tanto é que já vão alterar novamente (a ATP voltará a contar os pontos de torneios de US$ 15 mil em seu ranking) para o sistema antigo. Então para mim não afetou tanto, né?

Acho que afetou mais quem tinha a chance de jogar quali de Challenger, né? Porque praticamente acabaram os qualis…

Isso e o novo ranking afetou quem tinha muito ponto somado em Future. De repente, esses pontos não serviam mais para jogar Challenger. A não ser que você fosse top 10 ou top 20 desse novo ranking (da ITF), que eram somente os melhores mesmo, mas quem estava 80 desse ranking – e para estar 80 tinha que ter somado bastante em Futures…

Que nem era o seu caso, né?

Sim. E acabou que esse pessoal que tinha isso foi afetado um pouco.

Agora me conta como foi essa experiência em Abuja, na Nigéria, de dar uma aula para as crianças de lá. Como aconteceu isso?

Foi o seguinte… Desde que a gente chegou lá, tinha muitas crianças carentes no local do torneio, que era nas quadras da federação nigeriana de tênis. Nos arredores da federação, tinha muitas crianças carentes, que moravam ali perto, em condições extremamente precárias, em casas de papelão, pouco acesso a higiene, alimentos, roupas, enfim… Condições realmente precárias. Muitos deles tinham uma raquete bem antiga, outros nem tinham corda para jogar, eu vi uma criança com o que pareciam uns fios de nylon atravessados na raquete e ficavam buracos, né? Eu me interessei, perguntei a uma pessoa lá de onde vinham essas crianças, qual era a situação delas, por que estavam ali… Eles me falaram que uma pessoa ia nos vilarejos próximos pegando as crianças e levando para esses centros de moradia ao redor das quadras, trazendo elas para jogar tênis, para tirar das ruas também, né? Eles me falaram sobre isso, e realmente era muito comovente como crianças em uma situação tão precária, tão extrema, estavam sempre de bom humor. Eram extremamente educadas, sempre nos recebiam com um sorriso no rosto apesar de todas as dificuldades. Não tinham nada e nunca estavam pedindo coisas, sabe? Sempre na delas, respeitando o espaço e sempre muito alegres de ver os jogos, de ver os atletas lá, se envolvendo com uns atletas…

Que legal!

Um dia eu estava treinando com o Gilbert [Klier Junior] e tinha umas crianças em volta, vendo. Assim que acabou o nosso treino, elas já invadiram a quadra para brincar entre elas. Eram umas quatro ou cinco crianças. Eu gosto muito de criança e também de poder, de repente, causar um sorriso, dar uma alegria para uma criança assim, tão necessitada. Com simples gestos, você dar um bom dia, uma atenção, elas já ficam extremamente felizes. É muito gratificante isso, então eu resolvi brincar um pouco com elas, seguir um pouco na quadra e brincar, bater uma bolinha. Elas ficaram super felizes, começou aquela festa na quadra, e as outras crianças do complexo que ficavam ali viram e ficaram felizes com a oportunidade de jogar com um atleta do torneio e tal… E começaram a correr para a quadra. Aí, quando eu fui ver, tinha umas 30 crianças de repente! (risos) Eu via a alegria delas e falei 'vou fazer alguma coisa aqui para dar uma oportunidade de todo mundo brincar'. Organizei meio que umas brincadeiras, ia batendo um pouquinho com cada um, depois joguei uns pontos, fiz uma fila para jogar um pouquinho com cada uma…

Vocês se comunicavam em que idioma?

Em inglês. Assim, lá o idioma é inglês, mas que parece meio caipira assim. É um pouco difícil de se comunicar, mas dava para se comunicar. Depois, no fim, falei que quem ganhasse um ponto de mim eu ia dar refrigerante. Para eles, era… nossa! Depois, umas quatro ou cinco crianças ganharam lá, eu comprei refrigerante e fizeram a maior festa, ficaram felizes. E, para mim, foi muito gratificante porque no final – eu fiquei uns 40 minutos, uma hora com as crianças – todas elas vieram em volta de mim, me abraçaram, me cumprimentaram, extremamente gratas por aquilo. Essas coisas são muito gratificantes, né? A história foi mais ou menos essa.

É o tipo de coisa que faz você ver o mundo de uma maneira diferente, né?

Ah, sim. Foi uma experiência humana, eu diria, muito interessante para a gente dar valor às coisas que a gente tem, à vida que a gente tem porque lá… Uma outra situação que me chamou atenção, para você ver como são precárias as condições, é que as crianças iam sempre com a mesma roupa surrada, suja, você via que eles não tomavam banho e estavam todos os dias lá. Um outro dia, eu estava saindo da quadra, treinando também, e tinha uns [garotos] que eu ia ficando mais próximo, até amigo, meninos de 5 anos, 8 anos. Fazia bastante calor, eu estava tomando água, e um deles perguntou 'posso tomar um pouco?' Eu falei 'claro'. Era uma criança de uns 6 anos assim, muito pequenininha. Eu estava com uma garrafa pet de água mineral, dei para ele. No que eu dei, outros três que estavam ali meio que começaram a brigar pela água. Eu disse 'não, calma, tem para todo mundo'. Começaram a tomar e, juro, tomavam 400-500ml numa golada só! Numa criança de 4 anos, como é que cabe na barriga de uma criança esse tanto de água? Devia estar realmente com sede. Não sei quando eles têm acesso a água mineral para beber. São situações que chamam atenção para quem não está acostumado a ver e te fazem repensar, fazem você rever os seus valores. Foi uma experiência muito legal de ver todas pessoas nessas condições e ver a energia que elas têm, a felicidade que elas vivem nessa condição.

É uma realidade muito diferente, né? Às vezes, a gente fica apertado financeiramente, mas é tão distante disso…

É! Eu acho que, assim, [falta de dinheiro] não tem que ser um motivo para a pessoa viver triste ou de mau humor porque… Eu fiquei realmente impressionado com isso. Como eles têm uma energia boa e estão sempre felizes. Muito mais felizes do que gente que eu vejo com dinheiro! E vivendo na miséria extrema! Realmente, é para se pensar.

Aproveitando que estamos falando de dinheiro, você continua sem apoio. Zero de patrocínio, CBT… Como você está?

De apoio eu tenho a Fila, que me fornece material esportivo total, e tenho de cordas também, um patrocínio internacional da Kirschbaum, que também é um custo alto para nós, profissionais, porque corda quebra muito. Tirando isso, agora nada mais. Zero.

Eu lembro da história que o globoesporte.com publicou uns anos atrás durante o Rio Open, quando você precisou colar uma raquete com super bonder…

Por sinal, passei pela mesma situação ontem mesmo! (risos) Não sei que problema que eu tenho, se seguro muito forte a raquete que quebra às vezes. Ontem, eu tive que novamente colar uma raquete. A mesma história do Rio Open. Quebrou um cabo da minha raquete! Mas quando eu estive na Davis, a CBT me presenteou com quatro raquetes e depois, tirando isso, nenhum tipo de patrocínio e nada além disso. Por sinal, já estou precisando trocar minhas raquetes, que já estão com mais de um ano e bem gastas, então estou precisando. Mas estou sem nenhum tipo de patrocínio.

Para pagar as contas no circuito, como você faz?

Hoje, o que eu ganho de premiação em torneio dá para cobrir talvez 30%, no máximo 40% dos meus gastos. Muitas vezes eu tento viajar sozinho também porque o gasto de viajar com um treinador ou um psicólogo é alto.

Aqui você está com o Aparício Meneses, que é seu psicólogo, né?

Ele é meu psicólogo. Quando dá, tento levar ele ou algum treinador lá da academia porque você tem que pagar os custos, mais o salário da semana, o acerto que você tiver. Eu tento equilibrar dentro do possível. Isso é possível graças aos meus pais. Minha família que me ajuda a seguir fazendo isso. Meus pais são médicos, têm uma condição boa de vida, mas não sobra dinheiro. Você tem que estar trabalhando constantemente para ajudar e possibilitar isso. Obviamente que eu gostaria de ter uma independência maior ou uma possibilidade de ter uma estrutura de viajar mais com treinadores, mas eu não posso reclamar porque sempre tive muito apoio da minha família. Sempre tive condição de viajar com uma pessoa, desde jovem viajando com treinador ou psicólogo. Agora estou dando uma segurada nesse sentido porque meus pais também já estão há muito tempo fazendo isso. Eu tenho consciência disso e tento ajudar ao máximo. E tem muita gente que não tem condição de viajar com treinador às vezes, né? Eu sou grato por isso, mas ao mesmo tempo não é fácil a situação. Longe disso. A gente faz o possível para economizar e, ao mesmo tempo, fazer o melhor possível.

E o que você tem como objetivo para esse segundo semestre?

Eu estou numa fase que, como falei, tentando me reencontrar nas quadras. Reencontrar aquela sensação boa de estar competindo com autoconfiança, de entrar para jogar e estar se sentindo preparado, forte para competir. Venho crescendo nesse sentido, com alguns resultados já um pouco melhores, fiz algumas semifinais recentemente. Estou começando pouco a pouco a reencontrar esse caminho, feliz pra caramba de estar nesta semana em Curitiba, jogando um baita torneio desse. Faz tempo que eu não tinha a oportunidade de jogar no Brasil, de estar perto das pessoas que eu conheço, que eu gosto, de estar no meu país… Eu agora estava na Tunísia. Você atravessa o mundo para jogar torneios que não são os torneios que você gostaria de estar participando. Condições não tão legais, distante das pessoas que você gosta, muitas vezes sozinho… É difícil, né? Mas enfim… Agora estou me reencontrando, feliz de estar aqui, buscando esse caminho das vitórias, da alegria de desfrutar novamente.

Sobre o autor

Alexandre Cossenza é bacharel em direito e largou os tribunais para abraçar o jornalismo. Passou por redações grandes, cobre tênis profissionalmente há oito anos e também escreve sobre futebol. Já bateu bola com Nadal e Federer e acredita que é possível apreciar ambos em medidas iguais.
Contato: ac@cossenza.org

Sobre o blog

Se é sobre tênis, aparece aqui. Entrevistas, análises, curiosidades, crônicas e críticas. Às vezes fiscal, às vezes corneta, dependendo do dia, do assunto e de quem lê. Sempre crítico e autêntico, doa a quem doer.