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Saque e Voleio

Três cirurgias, emprego em escritório e treino com Federer na Suíça: a história feliz de John Millman

Alexandre Cossenza

04/09/2018 07h46

John Millman, 29 anos, número 55 do mundo. É bem possível alguns dos leitores do Saque e Voleio nunca tenham ouvido o nome do australiano. Até ontem, quando ele protagonizou a maior zebra do US Open de 2018 com uma virada improvável sobre Roger Federer: 3/6, 7/5, 7/6(7) e 7/6(3).

O triunfo em Nova York, nas oitavas de final do torneio, foi o capítulo mais bacana de uma história de luta e força de vontade de um dos tenistas mais queridos nos vestiários circuito mundial afora. Um cidadão que, para chegar aonde chegou agora, passou por duas cirurgias no ombro – período no qual pediu um emprego de escritório em Brisbane – e mais uma operação na virilha.

Uma história que também inclui um período de treinos na Suíça, este ano, a convite do próprio Roger Federer. O suíço contou como aconteceu e como foram os dias ao lado do australiano antes da temporada de grama.

"Em parte, foi porque ele perdeu cedo em Paris [Millman caiu na estreia diante de Denis Shapovalov em Roland Garros]. Queríamos alguém que fosse um cara legal, que treinasse duro e que talvez estivesse procurando um lugar para ir e treinar na grama e nas quadras duras comigo antes do ATP de Stuttgart. Eu não sabia que ele tinha uma namorada em Stuttgart. Severin [Luthi, técnico de Federer] convidou, ele disse "Claro, estou pronto pra ir", e tivemos ótimos dias juntos."

Isso foi depois de uma das campanhas mais surpreendentes do ano. Millman foi ao ATP 250 de Budapeste como #94 do mundo e, pela primeira vez, fez uma final de ATP. Perdeu para Marco Cecchinato, mas deu um salto no ranking e ganhou a confiança de quem sabe que está no caminho certo.

Caminho que quase não aconteceu. Millman teve dúvidas. Depois de se aproximar do top 100 em 2013 e alcançar o 126º posto, o australiano teve problemas no ombro. Ficou 11 meses sem jogar e, em junho de 2014, era apenas o 1.193 na lista da ATP. Sua entrada no top 100 aconteceu em 2015 e Millman até se aproximou do top 50 em 2016, mas veio outra lesão – agora na virilha. O tenista fez uma parada forçada no início de 2017 e, em agosto do ano passado, figurava apenas no 235º posto.

"Você precisa começar do zero e é um desafio. É um desafio financeiramente, é um desafio fisicamente, mentalmente… É duro começar de novo algumas vezes, mas você faz isso, passa por todos os momentos na fisioterapia para algo como isto [a vitória sobre Federer]. Tudo se torna mais compensador. Sou extremamente sortudo de ter um grupo grande de pessoas – não só no tênis, mas amigos e família em casa – que me ajudaram a continuar otimista e motivado porque houve vários momentos em que eu estava pessimista e abatido", disse na coletiva após avançar às quartas de final.

Sensação de culpa

Uma hora depois do fim do jogo, era possível perceber um Millman muito pé-no-chão durante a conversa com os jornalistas. Mais do que se vangloriar de um resultado – o que seria justo de qualquer pessoa que derrota Federer em um slam – preocupou-se mais em elogiar o rival abatido e falar que se sentia meio culpado, já que tanta gente torcia pelo suíço.

"Com toda honestidade, Federer é um herói para mim. Eu admiro ele, adoro sua equipe. Ele sempre foi um dos caras no vestiário que sempre conversam, fácil de se aproximar. Eu me senti meio culpado hoje. Ele não teve seu melhor dia, é óbvio. Eu sei disso. Sei bem que ele não teve um bom dia. Provavelmente, para ganhar dele, eu precisava que ele tivesse um dia ruim e eu precisava ter um dia bom."

Millman é natural de Brisbane, uma cidade de clima quente e onde a umidade do ar está quase sempre acima de 50%. Por isso, sentiu menos os efeitos na noite quente e úmida que afetou Federer. O suíço culpou as condições climáticas por seu desempenho abaixo da média. Afirmou que não sentia o ar entrando em seus pulmões. Millman disse que apenas suou mais do que o normal. Será, então, que o australiano pode aprontar mais uma e derrotar Novak Djokovic nas quartas? O sérvio, vale lembrar, sentiu problemas com o calor em duas partidas neste US Open. Para o azarão, não custa acreditar.

"Sim, por que não? Eu terei que ser muito melhor do que na última vez que joguei contra ele [no torneio de Queen's deste ano, Djokovic venceu por 6/2 e 6/1]. Ele é um jogador incrível e está numa ótima forma agora. Mas sim, por que não? Acho que seria um desserviço entrar em quadra sem acreditar nisso."

Mesmo que não consiga, Millman já tem um feito enorme no currículo: é o primeiro tenista fora do top 50 a eliminar Federer no US Open. Além disso, sairá de Nova York com o melhor ranking da carreira (dentro do top 40) e a certeza de que a caminhada, às vezes cruel, valeu à pena.

Sobre o autor

Alexandre Cossenza é bacharel em direito e largou os tribunais para abraçar o jornalismo. Passou por redações grandes, cobre tênis profissionalmente há oito anos e também escreve sobre futebol. Já bateu bola com Nadal e Federer e acredita que é possível apreciar ambos em medidas iguais.
Contato: ac@cossenza.org

Sobre o blog

Se é sobre tênis, aparece aqui. Entrevistas, análises, curiosidades, crônicas e críticas. Às vezes fiscal, às vezes corneta, dependendo do dia, do assunto e de quem lê. Sempre crítico e autêntico, doa a quem doer.