Topo

Saque e Voleio

Paula Vieira Souza é promovida ao nível máximo da arbitragem mundial

Alexandre Cossenza

18/12/2017 11h15

A partir de 2018, o Brasil terá um segundo integrante na elite da arbitragem mundial. Ou melhor, uma integrante. Paula Vieira Souza acaba de ser promovida a árbitra de cadeira gold badge, o nível mais alto que um profissional do ramo pode alcançar. Ela é atualmente a única das Américas nesse patamar. Uma das dez mulheres "gold" do planeta. Um feito, definitivamente, para poucos.

Antes de ir adiante no assunto, uma admissão: tenho isenção zero para falar de Paula Vieira Souza. Minha primeira entrevista com ela foi em 2007, quando ela ainda era bronze badge e passava boa parte do ano trabalhando em torneios femininos pequenos no México. Pagava a viagem de seu próprio bolso e ficava lá adquirindo experiência e horas de quadra.

Nunca perdemos contato depois daquela primeira entrevista. Paulinha – apelido que vem do seu 1,58m de altura – sempre foi tão simpática quanto competente. Tão atenciosa comigo ou qualquer um da imprensa quanto com árbitros em início de carreira que lhe escreviam e pediam dicas e conselhos (sei bem porque um amigo meu, hoje white badge, escreveu um email e teve uma resposta dedicada).

Hoje com 35 anos, Paulinha foi igualmente simpática quando conversamos em novembro, durante o Challenger do Rio de Janeiro. Ela era a única silver badge do evento e tirou um tempo para conversar sobre sua carreira e as peculiaridades da profissão de árbitro e tênis. Falamos antes e voltamos a conversar – bem brevemente – depois da notícia de sua promoção a gold.

O resultado é a transcrição abaixo. Quase uma conversa de amigos, mas com os limites impostos pelas profissões. Árbitros não podem falar oficialmente sobre certos temas, então a entrevista não aborda tudo que eu gostaria (escrevo mais sobre isso no fim deste post). Ainda assim, foi um papo bacana, descontraído e que vocês, leitores, vão curtir. Rolem a página e conheçam mais essa incrível brasileira.

Como você começou?

Como é que eu comecei a arbitrar? (risos)

(risos) Eu já fiz essa matéria dez anos atrás, eu sei que você sabe que eu sei, sabe? (mais risos) mas eu não posso começar do nada porque vai ter leitor que não te conhece.

(mais risos) Eu sei. Tá. Eu comecei quando tinha 16 anos. Eu jogava tênis no Petrópole Tênis Clube, em Porto Alegre. Não era boa o suficiente para ser profissional. Nem perto disso. Pelo menos eu era realista (risos). Teve um torneio no Petrópole, um brasileiro infantojuvenil. Tinha aqueles Brasileiros de verão, com Caxias do Sul, Porto Alegre, Novo Hamburgo… Muitos anos atrás. A federação local, na época foi o (Waldomiro) Pena que me deu a chance. Ele me deu um radinho e disse "Me avisa quando acabar alguma quadra. Só não entra na quadra pra resolver problema, mas me avisa." E eu gostei. No meio do ano, teve um curso da CBT, que foi o Ricardo (Reis) que deu o curso. Foi meu primeiro professor, eu chamo de meu mestre.

Foi meu professor também.

Mestre. Muito bom. Fiz o curso com ele porque só poderia arbitrar de verdade com a certificação. Depois, comecei a arbitrar em torneios pequenos. Torneios infantojuvenis. Passei bastante tempo nisso daí porque é o caminho. Tu não pode pular nenhuma parte. Tem que começar ali de baixo pra chegar lá em cima. Isso eu tinha 16 pra 17 anos. Acabei o colégio, mas eu viajava finais de semana. Estudava de segunda a sexta e saía correndo porque infantojuvenil começa sexta. Conheci todo o interior do Rio Grande do Sul! Fui tomando gosto, comecei a fazer cadeira nas finais desses infantojuvenis. E aí falei "Vou fazer white badge", que foi em 2003.

Aí já é prova, né?

Aí já é prova. Daí white badge já é uma escola da ITF. Já é uma escola toda em inglês. Hoje em dia tem green badge, que é abaixo do white. Na minha época, não tinha. O green é em espanhol ou francês. Quem não fala inglês pelo menos tem a chance do espanhol. Na minha época não tinha. Meu inglês era muito do ruim, eu fui aqui, ó… na coragem fazer o curso (risos). Mas passei no white e aí já estava certificada a fazer cadeira nos Futures. Podia fazer no nível da ITF.

E do white pra frente não tem mais prova, né?

Bronze também. Bronze é o último curso que tem sala de aula. Porque o white, na verdade, eles te avaliam na sala e na quadra. Tu tem que fazer um jogo para ter uma avaliação. Por isso que o white badge tem que ser feito durante um Future. Conta como prova prática o juiz de cadeira na quadra. O bronze é só na sala de aula. No (curso de) bronze, entra muito mais situações porque todo white deve saber a regra. Tu não aprende regra diferente no bronze. O que tu tem que fazer é que eles entram mais com Copa Davis, grand slam, Fed Cup. No white, é mais regra. O bronze é mais diferenciar os circuitos.

E aí você tem que saber as pequenas diferenças…

Claro. Daí no bronze entra WTA, grand slam… Como funciona o time violation na ATP, como funciona na WTA… São as pegadinhas. Pra fazer o bronze, tu já tem que estar preparado, sabendo dessas regras. Se tu for aprovado pro bronze, já vai poder fazer todos tipos de torneio.

Dá uma exemplo de uma pegadinha dessas?

Tá. O mais básico, mas tem gente que não sabe: tempo.

Os 20 e 25 segundos, né?

É. 25 é só ATP, 20 é todo o resto. Time violation: na ATP, hoje, na regra deles, a primeira violação é advertência, se tu está sacando ou recebendo, mas a segunda, se tu está sacando, é segundo serviço. Se tu está recebendo, perde o ponto. Na WTA, não é assim. Então, dependendo dos circuitos, tem algumas pegadinhas assim. Roupa na ATP é completamente diferente.

Roupa?

O uniforme. O que pode, os comerciais… É tudo diferente da WTA e da ITF também.

Isso tudo são vocês que fiscalizam, né?

É o juiz da cadeira. Chega na quadra, tu fala "Ih, isso daqui tá meio grande". A gente também não vai pegar uma régua e estar lá medindo com o jogador. Geralmente, a gente chama o supervisor. O supervisor vai e diz "Ah, ele já veio aqui e já mediu, tudo ok" ou "Não, vou dar uma olhada". Geralmente, a gente já conhece, as roupas deles são padronizadas, mas às vezes muda o uniforme, de um ano para outro… Começa ali na Austrália, Nova Zelândia, você fala "Opa, esse comercial está um pouquinho grande", então é aquela época de dar uma revisada. Mas é o juiz de cadeira que checa isso daí.

Eu lembro que uma vez vi uma testeira da Teliana e te perguntei… Você disse "não, já mediram."

Às vezes, tu olha e fala "Nossa, que coisa grande", mas na verdade tem uns que são mais finos e mais longos, extensos. Tem outros que são mais gordinhos. Então, na verdade, tudo é em polegadas quadradas (a medida da área ocupada pelo anúncio na camisa).

E, voltando, para ser promovido de bronze para silver, vale a avaliação em quadra.

Isso. Do bronze pro silver e do silver pro gold, ambos são… Todos nós somos avaliados na grande maioria dos torneios por árbitros que estão um nível acima da gente ou pelo supervisor ou o árbitro-geral. E aí, no fim do ano, por exemplo: "Paula tem X avaliações, vamos ver como foi." É tudo junto. É tua carreira, teu currículo. Tempo não importa. Não é normal alguém virar silver num ano e virar gold no ano seguinte. Pode acontecer. Não existe regra pra isso, mas geralmente é uma coisa que exige mais experiência. É que nem piloto de avião. Tu vai de um avião pequeno para um avião maior com horas de voo. A gente fala que são horas de quadra. A melhor maneira de tu aprender é sentado numa cadeira.

Qual é a parte mais difícil da profissão?

Eu só posso falar por mim, não posso falar por todo mundo, mas pra mim a parte mais difícil é tu ficar muitas semanas fora de casa. Tu acostuma, pra ti é normal já, mas as pessoas não entendem. As pessoas que têm vida normal acham que isso é uma loucura. Eu tenho amigo que viaja uma vez, vai pra Ásia e volta e diz "Como é que tu aguenta?" Então o mais difícil pra mim é isso. É fuso horário, é se adaptar… Tu chega na Ásia, tu tem 24 horas pra estar bem pra poder arbitrar um jogo. Acho que é isso daí. Jet lag e distância da família e amigos. O WhatsApp se torna o seu melhor companheiro. Aí chega na Ásia, eles bloqueiam Gmail, bloqueiam tudo. Parece que é o fim do mundo (risos). O único vínculo que tu tem com teus amigos… Tu fala "Ah, meu deus, e agora?" É VPN pra cá, VPN pra lá… É a nossa vida.

A logística disso quem faz? A WTA?

Eles fazem meu calendário. Eu faço com a WTA. Meu contrato é com eles, então eles são donos do meu calendário. Eu afaço acho que 95% do ano para eles. Aí, quando tem uma folguinha – e eles também acham importante a gente estar em todos os circuitos – aí faço grand slam, uma Davis, uma Fed Cup, um Challenger… Tento fazer uma agenda saudável pra não saturar a gente também.

Muitas pessoas não sabem disso, mas tem árbitro que é contratado pela WTA, tem árbitro que é contratado pela ATP… São acordos diferentes.

É um comum acordo, na verdade. A minha chefe na WTA, que ela faz meu calendário… O mais importante na vida de um árbitro, quando tu começa a ser full-time, é ter uma agenda saudável. Isso depende de pessoa para pessoa. Tem gente que aguenta sete semanas seguidas. Tem gente que aguenta três, quatro. Eu já sei meu limite. Sei que acima de tantas semanas não vou estar 100%, então tenho que dar um break. É isso que eles tentam acomodar. Se tu for ver, são muitos eventos e não são tantos árbitros assim. Na verdade, o principal que a WTA se preocupa comigo é minha agenda. Tem que ter descanso. E aí depende dos torneios que precisam de mim, ainda mais na minha região, que é Brasil. Aqui (Challenger do Rio) é um torneio que precisa de um árbitro silver. No silver, na América do Sul, só são dois. Eu e o Fábio (Souza, marido de Paula). O Fábio estava em Londres (no ATP Finals, na semana anterior à do torneio carioca). Se eu não faço esse evento aqui, tinha que vir um silver de outro lugar do mundo, entendeu? Claro, é uma semana que eu estava descansada já, então não foi difícil pra mim. Isso é uma agenda saudável.

E ser casada com um árbitro ajuda?

Ajuda bastante!

Vocês estão casados há quanto tempo?

Quatro anos vai fazer agora. Estamos juntos há oito. Ajuda porque tu tem um porto seguro, ainda mais quando tu viaja junto. Não é sempre que a gente tá junto. Não é sempre.

Dá pra conciliar razoavelmente?

As agendas? Dá! Às vezes, a gente fica três, quatro semanas sem se ver, mas pra gente isso é normal porque a gente entende. Quando eu tô viajando e tô num torneio, O Fábio às vezes entende que talvez naquele dia eu vá conseguir falar com ele no máximo cinco minutos. Porque pode ser um dia ocupado, tem fuso horário, eu tô na China e ele tá no Brasil, são 12 horas e diferença, então vamos falar quando eu acordo pra dar boa noite e quando ele acorda pra me dar boa noite. Isso facilita muito porque um sabe o que o outro está vivendo no torneio. Não é aquela coisa "Ah, você não tem tempo pra falar comigo." A gente sabe como é. Tu não deixa de sair pra jantar porque "Agora tenho que falar com meu marido". Talvez um marido que tenha outra rotina não entenda que tu está correndo, chega no hotel, toma um banho e tem que sair correndo senão teu grupo não vai te esperar. É muito fácil quando tem alguém do meio e está junto contigo viajando.

Como é o dia de trabalho de vocês? Tem limite? É por hora, por jogo…

Não tem limite. É óbvio que tem que ter um número de árbitros pra ninguém… O normal, geralmente, é dois (jogos por dia). Vai chegando o final de semana, tu vai fazendo menos jogos. Mas tem situações que… se chove, eu já fiz quatro jogos por dia, por exemplo. São situações que fogem do nosso controle. Não vai acontecer em qualquer torneio, mas a gente está preparado pra isso. Quando eu era white, no México, acho que fiz sete. Acontece. Um árbitro perde avião, outro fica doente, diversas situações. Mas numa situação normal de um evento, dois ou um jogo.

Aliás, eu ia esquecendo de perguntar dessas viagens pro México. Eu lembro que foi a época que eu te conheci, e você bancava tudo do seu bolso. O quanto isso ajudou? Não estou querendo tirar seu mérito nem questionar sua competência, mas eu imagino o seguinte: a pessoa que está lendo isso está pensando algo do tipo "Puxa, eu não tenho dinheiro, eu consigo ser árbitro sem bancar umas viagens assim?" O quanto é preciso bancar do próprio bolso pra mostrar competência?

Na época que eu comecei, eu tive essa chance de trabalhar no México, que era uma pessoa que organizava todo circuito feminino lá. Naquela época, tinha 30 torneios femininos por ano. Ela sempre mantinha o mesmo grupo, que é uma coisa super difícil hoje em dia. Geralmente, tu vai mudando o grupo (de árbitros). Ela não, tanto que eu digo que é nossa mãe mexicana. Graças a ela, eu tive a experiência que eu tive de horas na quadra porque… Pra ti ter uma ideia, hoje em dia eu faço 220 jogos por ano. Na época que fui pro México, teve ano que eu fiz 320, 330. Cem jogos a mais. Tem muitos árbitros que fazem 50, 60 por ano e olhe lá. Mas eu acho que foi importante trabalhar lá porque é uma pirâmide. Tu tá embaixo, tu é white, Lá em cima, tu é o gold. E tu vê que a proporção vai diminuindo. White tem mais que bronze, bronze tem mais que silver… Pra tu se tornar necessário para um evento… Entendeu o que eu quero te dizer? Por exemplo: eu como white, tinha mais 500 no México. Como ela ia bancar minha passagem de, sei lá, mil dólares, se ela tinha gente lá? Ela me oferecia (o emprego), mas não podia bancar tudo. Foi aí que eu disse "Quer saber? Acho que vai ser importante pra mim isso daí." Então claro, eu ia comprar minhas passagens. Mas eu não conheço nenhum árbitro que não tenha investido na carreira. Não tem. Porque tem muito árbitro no mundo, ainda mais numa categoria que está iniciando, então acho que tu tem que se fazer necessário. Se tu não faz, tu vai ter que correr atrás por um tempo. Não acho que vai denegrir a imagem de ninguém. Cada caminho que eu fiz eu tive orgulho, foi difícil. Aí você fala "Você faria isso de novo?" (risos) Eu acho que não. Eu era jovem, graças a Deus. Mas tudo que eu passei foi formando uma escada sólida, para ter aquela base bem sólida para eu ir adiante.

E a parte mais legal da profissão?

É conhecer o mundo todo, conhecer culturas. Às vezes tu vai pra países que talvez tu nunca fosse como turista, entendeu? Por mais que às vezes tu vá num país que tu não gosta da comida, é tudo muito diferente, tem coisas positivas no lugar, sabe? Acho que é legal. Tipo andar de camelo em Dubai, sabe? Uma coisa que tipo… Quando é que eu iria sendo uma pessoa normal, com trabalho? Quem hoje está mais favorecido pode fazer uma viagem legal por ano. Tem gente que não pode! Então fico pensando "Olha quantos lugares eu conheço!" Meu passaporte foi renovado agora, com um ano e meio.

Não tem mais página?

Não tem mais espaço. Ele vale por mais oito anos e meio. Eu fui na Polícia Federal em Porto Alegre, e eles, na triagem disseram "Mas senhora, teu passaporte tem validade até 2025". Eu falei "Mas meu amor, não tem mais uma página pra carimbar." Ele: "Nossa, é a primeira vez que vejo uma coisa assim na minha vida." Então isso é o legal. Tu entende? É carimbo daqui, visto de lá…

Você coleciona?

Eu guardo todos! Tem vistos legais. Tem entradas em países tipo "Oi, onde é que você foi?" Eu acho super legal. Essa é a parte legal, sabe? Tu poder conhecer culturas, tu poder conhecer pessoas dessas que moram lá, pessoas que são juízes de linha, pessoas que trabalham no evento… Eu acho que isso daí é sem preço.

Curiosidade: quantas milhas você faz por ano?

É que tu sabe que hoje em dia os programas de milhagem estão bem safados, né? Por exemplo, eu fui de Qatar Airways de São Paulo pra Doha e botei na Tam, que é One World. Eles me deram 1.500 milhas.

Por quê?

Porque a tarifa do bilhete é XYZ, e aí tu ganha 10% das milhas. Hoje em dia, as empresas fazem isso. Tu compra um tíquete, não é que tu vai ter aquelas milhas voadas.

Ah, a gente acabou pulando essa parte. Vamos voltar? É você que compra as passagens?

Ah, a gente pulou essa parte. Sim. As passagens sou eu que compro ou a agência da WTA, mas a gente prefere comprar que a gente consegue um preço até melhor e com a companhia que a gente prefere. E aí eles (WTA) reembolsam. Os hotéis são tudo com os torneios, a gente não se envolve em nada. O chefe de árbitros que coordena. Mas passagem geralmente é a gente que compra. Quando eu vou, por exemplo, agora pra Indian Wells, eu tenho que comprar Brasil-Palm Springs-Miami-Monterrey-Brasil, tudo separadinho.

Mas quando você compra já dá pra saber quantos dias você vai ficar no torneio?

Quando eu compro, sim. A gente só pode comprar depois que chega uma confirmação. Meu calendário do ano que vem já está montado.

Então eles não exigem que você compre com muita antecedência pra sair mais barato?

É exigido que tu compre a passagem quando tu recebe a carta de confirmação, que geralmente vem um mês e meio antes. Essa carta é que vai dizer os dias que eu vou trabalhar, o último dia de trabalho (num torneio). Mas sobre as milhas, o mais engraçado deste ano é que quando eu fui para a China, eu estava na United. Eu era silver na United. Em uma viagem de ida e volta, eu virei gold, platinum e 1K. Eu uma viagem (risos). Tanto é que os cartões chegaram juntos. Essa foi agora, foi muito engraçado. Pulei três categorias numa viagem.

Outra curiosidade: o que se faz pra não precisar ir no banheiro durante um jogo de 3h?

Ah, se precisar, não vai ser o fim do mundo. A gente evita. Eu não bebo muita água durante o jogo. Quase nada.

A garganta não reclama?

Não. Tipo.. Dá um golinho. Pra eu beber uma garrafa… Já aconteceu. Às vezes tu tá no torneio, quer beber muito, está úmido, em Acapulco, na China, um calor, a poluição te seca a garganta… Eu tento beber menos água antes dos jogos e bebo bastante depois. Mas eu evito beber de dia. Se tiver que ir no banheiro, a gente espera pelo menos um "set break", sabe? Se for saibro, é melhor, porque você vai e estão arrumando a quadra. Mas se precisar, não é o fim do mundo. Às vezes, acontece emergência. Às vezes, dá dor de barriga. Todo mundo é ser humano!

Eu ia chegar nessa parte… Dor de barriga… Faz o quê?

Acontece. Já aconteceu comigo. Comida! Tu vai pra outro lugar, é complicado. Tu não vai estar super concentrado no jogo, paciência.

E tem algo que se faça pra diminuir esse risco?

A gente come super saudável, na verdade. A gente come o que o jogador come.

E muda o horário de comer por causa do jogo?

Ah, sim. Agora eu fiz um jogo de três horas. Se fosse neste horário, de meio-dia às três da tarde, eu não teria almoçado. Eu ia almoçar depois das três. Nossa agenda depende dos jogos. Tem jogos que às vezes a gente é o próximo na quadra… É que nem o jogador. Tu fica olhando como é que tá e "Vou comer ou não vou comer?" Foi pro terceiro set, vou comer. Não? Vai acabar agora? Tô pronta pra entrar. Nossa vida é assim, mas a gente tenta fazer da melhor maneira possível (risos).

Em que idioma é mais difícil falar o placar?

Pra mim, foi… húngaro. Porque polonês eu tirei de letra. Estava me sentindo local. É que depende…

Você estuda na semana?

Tu estuda quando tu chega no torneio porque tu precisa ter alguém local pra te ensinar.

Hoje, você lembra de polonês?

O score, 15-30-40, eu sei. (risos) Mas não me lembro mais como é "game" ou "dois iguais". Na maioria das vezes, a gente chega dois dias antes dos jogos e tu pega um árbitro local. Vem, vamos sentar aqui e vamos estudar. A gente tem esse material, mas uma coisa é tu ler, outra é tu escutar. Às vezes, tu está uma semana na Polônia, na semana seguinte tu está na Rússia. E tu não vai aprender russo na semana que tu está na Polônia, senão tu vai esquecer o polonês. Geralmente, depois do terceiro dia, tu está bem. Não tem mais que ler, é uma coisa que você repete sempre. O que mais você tem que falar espaçado é tipo "sentar por favor", "fechar os portões".

Outra curiosidade: as pessoas sempre veem os árbitros com os uniformes dos torneios. Quantos uniformes você ganha por ano?

Em torneios da WTA e da ATP, tem que usar as camisas da WTA e da ATP, que são nossas. É um tipo só. A gente ganha, por ano, tantas camisetas, casacos, pronto. Nos grand slams, eles mudam a coleção todos os anos. Só Wimbledon que não. Eles mantêm a coleção por um certo período. Na Austrália, muda a cor da camisa. Na verdade, é tudo parecido, sabe?

Mas eles acertam o tamanho?

A gente tem que mandar. Todo ano, quando a gente faz a aplicação do torneio, eu tenho que mandar o tamanho de uniforme, tênis, tudo.

Eu posso estar confundindo, mas eu lembro de você ter me contado uma vez que em Wimbledon eles tiraram todas suas medidas.

Wimbledon é o mais tradicional deles. A Ralph Lauren manda os estilistas e costureiras porque quando tu veste o uniforme, eles vão checar a manga, se fica certinho, se o blazer ficou ok. Eles têm que te olhar de cabo a rabo, tudo. Eles olham um por um. Wimbledon é o mais rigoroso. Todos eles (grand slams) têm costureira à disposição, mas Wimbledon é aquele mais tradicional, que tu não pode estar com um centímetro a menos ou a mais na roupa. Tem que estar na perfeição deles.

E o que você faz com esses uniformes?

Os uniformes, na verdade, a maioria eu dou pra instituições de caridade que trabalham com tênis. Tem o Wimbelemdom, do Marcelo Ruschel, que é um amigão. Teve anos que eu fui lá, dei um mini-cursinho de arbitragem… já saíram dois juízes de linha de lá. Aí faço um cursinho de uma tarde, faço uma provinha e quem for melhor pode escolher o uniforme que eu levo.

Que legal!

Daí eles ficam super felizes. Todo mundo ganha presente porque eu levo várias coisas. Aquelas cordinhas de credencial com Roland Garros, Wimbledon escrito, eu dou todas as cordinhas. Eles adoram. Penduram chave, botam na mochila, adoram! São coisinhas pequenas que eu sempre vou guardando e levo. E tênis é uma coisa que a gente ganha muito. Cada torneio te dá um tênis.

Então você ganha 30 pares por ano?

Mais ou menos assim! Eu levo tênis praticamente novo, que eu usei só uma semana. Isso aí eu dou bastante pra eles lá também. Então imagina, eu e Fábio em casa, é roupa em dobro. Claro, a gente acaba… Algum amigo joga tênis, curte horrores uma camiseta! Eu não uso nada. Saio do torneio, não uso mais nada! No tempo livre, não quero estar com roupa de torneio de tênis, sabe? (risos) Tem pessoas que querem usar o dia todo quando eu dou. "Nossa, camisa de Roland Garros!" Eu acho o máximo, acho legal, mas a gente não tem mais isso (o encanto com os uniformes), então a gente dá tudo. (risos)

Mais uma curiosidade: você precisa descer da cadeira e mostrar a marca no saibro. Como você faz pra não perder a marca de vista e não pisar errado num degrau de escada e levar um tombo?

(risos) Então… Isso é técnica de arbitragem no saibro. O saibro é o seguinte… Você chega num torneio novo, não sabe como é a cadeira. Porque a cadeira muda em todo torneio. Então a melhor cadeira é aquela com os degraus não tão inclinados porque tu pode descer sem estar se segurando. E também é importante ter uma barrinha lateral pra ti segurar. A maioria não tem, ok. Tu vai ter que ter mais cuidado. Então tem cadeiras que tu tem que descer mais devagarzinho, tem cadeiras que tu consegue descer correndo porque tu não quer demorar. O jogador parou, às vezes é primeiro serviço… Se for fora, é segundo serviço, então tem que ter um pouquinho mais de agilidade. O que eu faço numa cadeira que eu não conheço, quando eu subir na cadeira pra colocar o jogo, eu já desço dela pra saber como estou descendo. Agora mesmo eu fui na Quadra 6, a cadeira é do clube, não é do torneio. E ela é super inclinada. Então falei "Opa, essa aqui vou ter que descer devagar." Eu já caí de cima de cadeira.

Sério?

Meu pé trancou num degrau, eu caí de cara no chão. Foi uma Fed Cup em Porto Seguro, Mas não perdi a marca! Me levantei e fui atrás da marca (risos). Cheia de saibro! Juro por deus! Foi tão engraçado… Então a técnica é tu descer de olho na marca. Não tira o olho da marca porque tu vai perder. É batata. Ainda mais na linha de base, que tem outras marcas, tem pisada… Tem marca que é mais fácil. Em começo de jogo, só tem uma marca ali, tu não vai perder. O procedimento é não tirar o olho da marca nunca, então tu vai descer com o olho nela. Às vezes o jogador tá falando contigo, tu continua falando com ele, mas olhando pra marca. Tu tirou o olho da marca, a chance é 99% de perder ela. E a primeira coisa quando tu chega na marca é apontar pra ela. Tu aponta e depois tu lê. Por que aponta? Porque é importante tu mostrar pra ambos jogadores que tu sabe qual é a marca. Às vezes tem duas pertinho, se tu vai lá e não aponta, tu tá lendo qual? Entendeu? Então você fala "É essa aqui", mostrou pro jogador, e eu muitas vezes olho pro jogador para ver se ele está me olhando. E depois tu pode ler e mostrar sua decisão.

Eu acho que já te perguntei isso, mas não lembro o que você respondeu. Muita gente que não conhece muito do tênis acha engraçado que o a maioria dos juízes desce da cadeira, passa da marca e dá aquela andadinha de costas. Por que?

Depende do ângulo que tu está. Eu não fico de costas pro jogador. Eu não leio a marca de costas pro jogador. Então por exemplo, imagina que uma bola na lateral foi chamada fora. O jogador está do outro lado da rede e vai querer ver. Ele vai estar perto da rede, querendo ver. Eu nunca vou me enfiar entre a marca e ele. Eu posso passar por ela, posso ler desse lado, mas vou passar porque o mais importante é o contato visual com o jogador. Tu vai mostrar "Foi essa daqui e foi fora". Às vezes tu tem que mostrar pros dois lados, às vezes a marca é super justa. O mais fundamental é tu não estar entre a marca e o jogador, é tu estar olhando para ele. É uma questão de respeito ao jogador.

E exame de vista, de quanto em quanto tempo você precisa fazer?

Todo ano. A ITF exige. Tudo que a gente manda vai para a ITF. Tem um formulário todo ano que tu leva pra teu oftalmologista. Tu faz o exame, ele assina, e tu manda isso aí de volta pra ITF. Isso comprova que tu enxerga bem ou que que tu tem a correção necessária. São vários testes. Testes de visão periférica, testes específicos que a ITF pede.

Tem também a questão do contato com os tenistas. Você já me contou, mas pra constar na entrevista: o que pode, o que não pode, que tipo de cuidado um árbitro precisa ter pra evitar problema?

É o que a gente fala: a gente vê o jogador todos os dias, em todos torneios, em todos restaurantes. A maioria sabe o teu nome, mas acaba por aí a relação. Não é que não vou poder pegar um transporte com um jogador. É claro que tu vai comer no mesmo lugar. Às vezes tem restaurantes super cheios, tu vai sentar lá e vai comer (na mesma mesa). É claro que tu não vai sentar lá e ficar batendo papo. Daí é a maneira que você vai lidar com isso daí. Ninguém é inimigo, mas é para evitar. Uma coisa é você sentar, comer e levantar. Outra coisa é sentar e ficar batendo papo três horas. Não acontece. Tem jogador que quer conversar alguma coisa, pergunta uma regra, pergunta outra coisa… Acontece. Todo mundo é educado com todo mundo. Mas tu não vai sair pra jantar com jogador, tu não vai tomar um drink com jogador, tu entendeu? É uma certa rotina que tu faz tudo junto, mas ao mesmo tempo tu está completamente separado. O limite é por aí mais ou menos.

E em redes sociais, que cuidados vocês precisam ter?

Os árbitros em redes sociais… Tu não vai ser amigo, não vai seguir tenista, entendeu? (risos) Não pode, não pode!

Você não tem rede social, né? Oficialmente falando…

Eu tenho um Instagram porque toda minha família e minhas amigas de infância ficam falando. Então comecei a sofrer bullying porque não tenho Facebook há dez anos já. Mas comecei a sofrer bullying da família e dos meus amigos. Estava tudo rolando e não estava sabendo de nada! Então falei pro Fábio "Vamos criar um Instagram pra amigos". Não é proibido. Tem gente que tem Instagram e segue gente da arbitragem do mundo todo. Eu criei um Instagram pra ter para os meus amigos. Para eles saberem onde eu estou. O que não pode fazer? Um árbitro tirar selfie na cadeira e postar "estou aqui no torneio tal". Isso é proibido. Não é para estar divulgando.

Curtir post de atleta, nem pensar?

Nem pensar! Nem pensar! Porque aí envolve o pessoal. Tu diz que gostou do que o tenista fez. Tem gente que não sabe se controlar, aí é melhor não ter rede social. Não pode. O meu Instagram é fechadinho. Tenho dois árbitros de tênis nele porque são padrinhos de casamento (risos). O resto eu não tenho. E basta por aí.

Tenista normalmente chega aos 35 e entra na reta final da carreira. Tem idade pra árbitro. Você pretende fazer isso por quanto tempo?

Na arbitragem, não tem idade que te obrigue a parar. Não tem. Claro que quanto mais cedo tu começar, melhor. É difícil também alguém começar a ser white badge com 60 anos. Muito difícil. Mas não tem idade. Tu tem que preencher os requerimentos. Mas acho importante, na minha opinião, arbitrar até quando me der prazer. Até quando eu for feliz fazendo o que eu faço. O dia que eu fizer por obrigação e sofrer por estar viajando e não poder estar em casa, talvez esse é o momento em que eu decida continuar ou não. Mas não posso te dizer "Quero por mais 5 anos" ou "Quero por mais 10". Isso é difícil de falar. Hoje, eu gosto! Enquanto isso me fizer feliz, eu vou continuar pelas quadras!

E qual a sensação de finalmente ser gold badge?

A sensação acho que é única, né? É um caminho muito longo, e muita gente não consegue chegar nem no silver. É um caminho que a gente sabe muito bem como é que é, tem uns que demoram mais que outros, mas enfim, acho que quando tu começa numa profissão como a arbitragem, tu quer almejar o máximo do que ela puder te dar. O nível máximo dela. Esse foi o meu caso. Chegou. É uma sensação muito legal de receber o email dizendo que eu fui promovida ao último nível. A última sensação que eu tive foi a de silver, que foi de 2011 para 2012, e quando ganhei o silver também foi uma baita de uma emoção. Imagina agora com o gold! Entrar num grupo seleto de, não sei, devem ser oito ou dez mulheres que tem no mundo todo. Acho que isso daí é uma baita de uma recompensa!

[Fim da entrevista]

Sobre a conversa acima, faz-se necessária a seguinte explicação. Quando um árbitro está em um torneio, é necessária a aprovação do supervisor para que ocorra uma entrevista. Conversei com Ricardo Reis, supervisor do Challenger do Rio, e mostrei as perguntas que gostaria de fazer. Ele aprovou a maioria, mas vetou algumas.

E isso não é, de jeito nenhum, uma reclamação. Ricardo Reis é competentíssimo no que faz. Temos uma ótima relação. Ele foi, inclusive, meu professor no curso de arbitragem nível I da ITF. O processo é simples: eu fiz o meu, que foi apresentar as perguntas; e ele fez o dele, que é explicar que árbitros não podem comentar certo tipo de temas. Simples assim. Sem drama.

Sobre o autor

Alexandre Cossenza é bacharel em direito e largou os tribunais para abraçar o jornalismo. Passou por redações grandes, cobre tênis profissionalmente há oito anos e também escreve sobre futebol. Já bateu bola com Nadal e Federer e acredita que é possível apreciar ambos em medidas iguais.
Contato: ac@cossenza.org

Sobre o blog

Se é sobre tênis, aparece aqui. Entrevistas, análises, curiosidades, crônicas e críticas. Às vezes fiscal, às vezes corneta, dependendo do dia, do assunto e de quem lê. Sempre crítico e autêntico, doa a quem doer.