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Saque e Voleio

Obrigado, mate, pelas lições

Alexandre Cossenza

21/01/2016 11h56

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Foi uma viagem daquelas. Dezenove anos desde a primeira aparição no Australian Open. Dezoito desde que um moleque abusado de 16 anos derrotou Mark Woodforde, Vincent Spadea, Andre Agassi e Jason Stoltenberg para conquistar seu primeiro título em um ATP. Lleyton Hewitt era o número 550 do mundo naquele início de 1998. Hoje, 21 de janeiro de 2016, com um ranking não tão diferente daquele, Rusty volta para casa. A derrota para David Ferrer na segunda rodada em Melbourne escreveu as últimas linhas desse livro … didático.

Sim, didático. Desde que entrou no circuito, Hewitt conquistou dois Slams, foi número 1 do mundo por 80 semanas, venceu dois ATP Finals e levantou a Copa Davis duas vezes. Primeiro, mudou o tênis. Depois, viu o esporte mudar. Desafiou a medicina. Passou por cinco cirurgias antes de voltar a derrotar tenistas de renome. Mudou seu comportamento, assumiu novas responsabilidades, novos papéis. E, a cada parada dessa viagem, mostrou o que fazer e o que não fazer; mostrou que é possível mudar, crescer, evoluir; que dá para correr atrás sempre um pouco mais, com mais força e por mais tempo. As lições estão aí para quem quiser.

O começo foi meteórico e revolucionário. Hewitt foi o primeiro grande voleador e escolher jogar no fundo da quadra. Nada que o impedisse de, eventualmente, subir à rede e mergulhar em busca de voleios vencedores, mas Rusty tinha velocidade para alcançar as bolas mais rápidas da época e rara habilidade para contra-atacar. Foi assim que derrubou o grande Pete Sampras numa final de US Open. Foi assim que conquistou Wimbledon, quebrando o domínio dos sacadores. Hewitt foi Rafa Nadal antes de Rafa Nadal.

O sucesso não veio sem turbulências. O jovem Hewitt entrava em quadra com uma arrogância que lhe fazia acreditar que tudo era possível. A postura fora de quadra fez um inimigos, atraiu críticos – inclusive entre seus compatriotas e companheiros de Copa Davis. Fernando Meligeni lembra que Rusty desrespeitou Alex Corretja durante um jogo do Australian Open (venceu por 6/0, 6/0 e 6/1), e o episódio pegou mal nos vestiários. Mas o jeito Hewitt de ser era vencedor dentro de quadra. Foi assim que Rusty veio a Florianópolis, derrotou Gustavo Kuerten em três sets e ignorou solenemente todas as provocações que o próprio Meligeni atirou em sua direção. Por dois anos quase inteiros, o australiano foi o melhor do mundo.

Aos poucos, Hewitt amadureceu. A intensidade e os gritos de "come on" continuavam, mas o respeito aos/dos colegas veio. Em 2012, quando o entrevistei em Newport, falou com enorme reverência sobre Gustavo Kuerten, que entrava naquele ano para o Hall da Fama Internacional do Tênis. Quando indagado sobre os porquês de tanto sucesso contra o brasileiro (venceu três dos quatro confrontos), sorriu e disse não saber. "Você tem que perguntar a ele." Em seguida, falou de sua velocidade e que devolvia muitas bolas. Na maior parte da conversa rápida, porém, o australiano afirmou que Guga havia mudado a maneira de se jogar no saibro.

Com o tempo, também surgiram adversários mais fortes, mais altos e mais talentosos. Em 2003, Roger Federer já despontava como o mais habilidoso de seus rivais, mas Rusty continuava levando a melhor nos confrontos diretos. Compensava na raça o que lhe faltava de potência. Foi assim que arrancou uma das vitórias mais marcantes da Copa Davis. Federer abriu 7/5, 6/2 e 5/3 na Rod Laver Arena. Hewitt triunfou por por 5/7, 2/6, 7/6(4), 7/5 e 6/1. Para ele, "Lutar até o fim" nunca foi um clichê para soltar ao vento nas derrotas. Foi um meio de vida. O único meio de vida.

"O bom do tênis é que não tem sirene. Você não joga contra o tempo. Você joga até aquela última bola, aquele último ponto acaba e você vai até a rede para cumprimentar o oponente. Até que isso aconteça, você ainda ainda tem algum tipo de chance de lutar."

Quando perdeu a final do Australian Open de 2005, Hewitt já estava alguns passos atrás da elite. Marat Safin, seu algoz naquela decisão, era o exemplo do tênis moderno: 1,93m de altura, saques dominantes e golpes potentes de forehand e backhand, além de uma movimentação admirável para alguém de sua altura. E, quando o esporte começava a deixar o australiano para trás, as lesões vieram para borrar ainda mais o horizonte. Foram cinco cirurgias em seis anos – de 2008 a 2013. Primeiro, no quadril direito. Depois, no esquerdo.

Em seguida, um problema sério no dedão do pé esquerdo exigiu outras duas intervenções. Rusty nunca desistiu. Sabia que não seria mais número 1 do mundo e que até o top 10 era um sonho distante. Mas seu prazer sempre foi competir por competir, descobrir até onde era possível chegar. Hewitt sempre testou seu limite. E não só o seu. Rusty desafiaria também a medicina e as probabilidades.

Um cidadão normal que fosse milionário aos 32 anos, casado, pai de três filhos e morando em Nassau, Bahamas, provavelmente tiraria um ano sabático ou férias por tempo indeterminado. Só que Lleyton Hewitt nunca teve nada de normal. Resolveu passar por uma quinta cirurgia, mesmo depois de ouvir de "provavelmente cinco, seis, sete médicos" que nunca voltaria a jogar tênis se passasse pelo procedimento necessário. Dois especialistas afirmavam que havia uma chance. Hewitt apostou em um deles. Enfiaram-lhe uma placa de metal que tirou os movimentos do dedão, mas também removeu a dor.

Foi possível competir outra vez. Foi possível vencer outra vez. Venceu um jogaço de cinco sets contra Juan Martín del Potro, sete anos mais jovem, no US Open de 2013. Naquele mesmo ano, eliminou Wawrinka em Wimbledon. Ganhou dois títulos em 2014 – um deles, em cima de Roger Federer. Voltou a figurar entre os 40 melhores, uma conquista gigante depois de tudo.

Eventualmente, os triunfos no circuito escassearam, e Hewitt passou a se dedicar quase exclusivamente à Copa Davis. Levou a Austrália à semifinal no ano passado, protagonizando inclusive uma heróica virada em cima do Cazaquistão, que chegou a abrir 2 a 0 no confronto. Agora, assume de vez a missão de capitanear o país que tem uma geração fantástica e, ao mesmo tempo, problemática com Nick Kyrgios, Bernard Tomic e Thanasi Kokkinakis. O histórico – dentro e fora das quadras – indica que Hewitt é a melhor pessoa para domar essa turma. As lições que ele deixou estão aí para todo mundo ver. É só abrir os olhos e querer enxergar.

Coisas que eu acho que acho:

– O vídeo "Lleyton Hewitt: The Final Tour" é espetacular. São 52 minutos com imagens belíssimas e um depoimento lindo do próprio Rusty. Se você não viu, veja. Se não tem tempo, marque o post e volte aqui mais tarde. Ou procura depois no YouTube, tanto faz. Mas veja e entenda Lleyton Hewitt.

– Publico este post ao meio-dia de quinta-feira, algumas horas depois do fim da partida contra Ferrer. Twitter, Instagram e Facebook já estão cheios de mensagens de tenistas mostrando sua admiração por Hewitt. É fantástico ver como o garoto que já foi odiado nos vestiários se transformou num exemplo para a geração de Nadal, Djokovic e Murray. O adolescente prodígio agora é ídolo para os Kyrgios, Kokkinakis e futuros tenistas australianos.

Sobre o autor

Alexandre Cossenza é bacharel em direito e largou os tribunais para abraçar o jornalismo. Passou por redações grandes, cobre tênis profissionalmente há oito anos e também escreve sobre futebol. Já bateu bola com Nadal e Federer e acredita que é possível apreciar ambos em medidas iguais.
Contato: ac@cossenza.org

Sobre o blog

Se é sobre tênis, aparece aqui. Entrevistas, análises, curiosidades, crônicas e críticas. Às vezes fiscal, às vezes corneta, dependendo do dia, do assunto e de quem lê. Sempre crítico e autêntico, doa a quem doer.