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Saque e Voleio

Sobre Andy Murray, rótulos, pesos e medidas

Alexandre Cossenza

22/01/2015 23h07

"Quando tive cãibras e ganhei no US Open ano passado, fui drama queen, estava fora de forma, precisava ver um psicólogo, fingi. Estranho…" Foi só um tweet, mas não precisou mais. Andy Murray deu todo recado que precisava. E o mundo do tênis, concordando ou não, entendeu o recado.

Rafael Nadal, que teve tonturas, quase vomitou em quadra e derrotou Tim Smyczek em cinco sets, foi aclamado como herói. Aquele jogo, para grande parte dos fãs de tênis e da imprensa, foi mais uma demonstração hercúlea da força do espanhol. Quando Murray teve problemas físicos em sua estreia no US Open do ano passado, foi duramente criticado e até acusado de fingir dores para atrapalhar o adversário.

Andy Murray não está criticando Rafael Nadal. Longe disso. Está, sim, sendo irônico – algo que faz como poucos no circuito. E, mais do que qualquer coisa, está fazendo uma inequívoca crítica aos rótulos que levam à adoção de pesos e medidas diferentes para todo tipo de atleta. E o britânico, qualquer que seja o motivo, sempre cai do lado errado de qualquer polêmica.

O exemplo escolhido por Murray foi o melhor possível. Os dois casos são recentes e incomuns. Ambos envolvem atletas fisicamente privilegiados que sofreram problemas raros – em estágios iniciais de um Grand Slam – e venceram suas partidas. Só que o tribunal público, composto por jornalistas e integrantes de redes sociais, deu vereditos bem diferentes.

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Murray raramente culpa problemas físicos por derrotas ou atuações abaixo do esperado, mas tem o hábito de resmungar, se alongar e colocar a mão aqui e ali (como pessoas normais fazem quando sentem dores). O circuito inteiro sabe disso. O circuito inteiro também sabe que, quando a bolinha entra em jogo, Murray sempre se esforça ao máximo. Só que em algum momento e por algum motivo, o escocês ganhou fama de catimbeiro. E esse rótulo não sai com água.

É o caso inverso de Roger Federer. O suíço é o melhor exemplo possível de gentleman. Suíço, educado, dono de golpes plásticos e uma movimentação baryshnikovesca. Raramente pede tempo médico (porque raramente se lesiona – uma relação que poucos fazem), quase nunca reclama com árbitros e jamais bate boca com um adversário. Mas quando, malandramente, pediu para ir ao banheiro em uma partida que perdia (a sombra em quadra lhe incomodava, e o tempo de paralisação foi o suficiente para que a sombra desaparecesse), foi chamado de "gênio até na privada". Dois pesos, duas medidas.

É inegável que há uma questão de reputação. Novak Djokovic, quando galgava postos no ranking mundial, abandonou um punhado de partidas. Victoria Azarenka tem um passado não muito diferente. Se um dos dois, hoje, entra em quadra com dores e abandona, o currículo é logo levantado por alguém. Djokovic já entrou em quadra lesionado (Monte Carlo, lembram?) só para não passar por isso. Vika foi pior. Agravou uma lesão séria porque se recusou a deixar a partida no meio. Não queria ouvir as queixas de sempre. Passou um bom tempo sem jogar.

Rafael Nadal, provavelmente o top 10 com mais lesões na história do tênis, vive um dilema não muito diferente. É acusado sempre de fingir e culpar lesões quando perde (ao mesmo tempo em que ignora-se a lógica que aponta que um tenista de seu nível não perde muitas vezes quando está bem fisicamente). Mas vale lembrar: não foi o espanhol que culpou o joelho em sua única derrota em Roland Garros. O mundo só soube da lesão algum tempo depois, quando ele desistiu de Wimbledon.  No dia daquele revés para Soderling, ninguém mencionou nada. Fast forward para um ano depois. Em Wimbledon/2010, Tomas Berdych eliminou Federer. Na segunda resposta da entrevista coletiva, sem ser indagado sobre alguma espécie de lesão, o suíço falou que não conseguiu jogar seu melhor porque tinha dores nas costas e nas pernas. Um gesto deselegante que a reputação do gentleman suíço praticamente apagou da história.

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O que incomoda (e me incomoda um bocado no caso específico de Andy Murray) é  o surgimento dessa fama. De onde veio? É porque Murray não sorri durante as partidas? Será que é porque ele não dança após as vitórias? Ou porque nunca publicou videozinhos engraçadinhos no YouTube? Ou será que é porque ele não desiste mesmo quando sente alguma espécie de desconforto? Neste caso, qual é o caminho? Para que lado fica a saída? É melhor desistir e ser chamado de frouxo ou continuar em quadra e ganhar o rótulo de catimbeiro? Não tem saída nesse beco.

O resumo dessa história toda é que o tweet de Andy Murray pode servir para despertar muita gente. "Por que este tenista aqui é um Oscar winner, e aquele lá, a reencarnação de Perseu?" é a pergunta que todos deveriam se fazer a cada caso desses.  Não que isso vá mudar a percepção dos fãs. Haters gonna hate, já diz o poeta. O mesmo torcedor que suspeita de uma apendicite orgulha-se da mononucleose mais curta e mais branda da Era Aberta. Mas eu divago. Murray deu a deixa. Cabe a todos, especialmente comentaristas e jornalistas, usar a balança antes de emitir uma opinião.

Coisas que eu acho que acho:

– Não acho (mesmo!) que nenhum dos tenistas citados neste post seja desonesto, catimbeiro ou mentiroso. Acho, sim, que todos eles já se aproveitaram das regras para tirar algum tipo de vantagem. Isto, contudo, não faz de ninguém um mau caráter incorrigível.

– O benefício da dúvida deve ser concedido a todos. Não somente aos sorridentes, dançarinos e videomakers. Que ninguém precise pagar o preço por optar manter um mínimo de autenticidade.

Sobre o autor

Alexandre Cossenza é bacharel em direito e largou os tribunais para abraçar o jornalismo. Passou por redações grandes, cobre tênis profissionalmente há oito anos e também escreve sobre futebol. Já bateu bola com Nadal e Federer e acredita que é possível apreciar ambos em medidas iguais.
Contato: ac@cossenza.org

Sobre o blog

Se é sobre tênis, aparece aqui. Entrevistas, análises, curiosidades, crônicas e críticas. Às vezes fiscal, às vezes corneta, dependendo do dia, do assunto e de quem lê. Sempre crítico e autêntico, doa a quem doer.