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Saque e Voleio

Tudo acontece por um motivo

Alexandre Cossenza

29/10/2014 14h42

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"Vou contar a história mais interessante da minha vida. Alguns podem dizer que fui burro. Outros podem me chamar de guerreiro. Aconteceu em agosto de 2012, só um mês depois de eu entrar no top 100 pela primeira vez e depois das minhas merecidas férias. Eu subi no ranking até o número 83, mas uma semana depois do corte para a chave do US Open, então tive que jogar o quali. Ainda lembro como se fosse ontem. A chave foi sorteada no dia dos primeiros jogos. Eu jogaria contra Ze Zhang, da China. Jogamos na hora do almoço, então não dava para comer muito logo depois do café da manhã. Enquanto andava para a quadra, senti uma pequena dor no estômago. Claro que me culpei por não comer o suficiente antes da partida. Ganhei fácil em dois sets e esqueci daquela dorzinha.

Fui comer, estava feliz e satisfeito com o dia de escritório. Depois do almoço, voltamos para o hotel e descansamos por algumas horas. Não estava cansado. Meu corpo estava relaxado. Como em todas as noites, decidimos ir a um restaurante para jantar. Foi uma boa refeição e era um longa caminhada de volta até o hotel. Senti a dor de novo no estômago, desta vez do lado direito e, por sorte, havia muitos sinais de trânsito, então conseguia ficar parado na única posição em que me sentia confortável – curvado para a frente, com as mãos apoiadas nos joelhos. Eu diria que foram dez sinais de trânsito, e parecia que estávamos andando há uma eternidade. A primeira coisa que pensei foi no que tinha comido para causar aquela dor. Não consegui lembrar de nada diferente em relação aos dias anteriores. Finalmente chegamos ao hotel. Fui direto ao banheiro e, infelizmente para mim, embora eu tenha visitado o banheiro algumas vezes antes de ir dormir, nada mudou. Meu estômago ainda estava doendo.

Dormi muito bem, mas só conseguia virar para um lado porque o outro doía muito. Acordei, e a dor ainda estava lá. De novo, o banheiro me chamava. Foram quatro vezes antes de eu me convencer de que algo estava errado e eu talvez devesse ir a um médico. Mas antes disso, como tenista, eu tinha que treinar. Depois de bater bola, fui ver um médico. Ele me perguntou onde era a dor, me examinou imediatamente e disse o que poderia estar errado comigo. Mas eu não ouvi. Ele sugeriu que eu não jogasse a partida daquele dia, mas era um Grand Slam, o US Open, e eu gentilmente pedi que ele me desse analgésicos. Ele me deu quatro comprimidos brancos e grandes, que tomei antes da partida, e me acompanhou até a quadra. Ele disse que assistiria ao jogo inteiro. Então ele ficou lá, sentado e, infelizmente para ele, foi uma partida longa.

Eu enfrentei um wild card americano chamado Daniel Kosakowski. Ele venceu o primeiro set, eu ganhei o segundo e comecei o terceiro com uma quebra. Tive cãibra na perna direita, então sabia que não aguentaria jogar do mesmo jeito até o fim. Além disso, comecei a sentir o estômago outra vez. Peguei leve durante alguns games e imediatamente perdi o saque duas vezes. Eventualmente, chamei o médico na quadra. Recebi mais alguns comprimidos. Eu me sentia muito mal, mas aquilo não me impediu de voltar e empatar em 4/4. Meu adversário estava sacando, e eu tive um break point. Fiz um forehand vencedor bem na linha, mas a bola foi chamada fora. Eu deveria estar sacando para o jogo, mas perdi aquele game e tive que sacar para continuar na partida.

Eu não estava nervoso, o que não era normal para mim num ponto como aquele. Eu tinha outros problemas. Embora quisesse vencer aquele jogo, também queria terminar inteiro. No game seguinte saquei bem, 5/5. No primeiro ponto do 11º game, cãibras nas pernas e nos braços. Eu me sentia fraco, mas disposto a lutar até o fim. Nós dois confirmamos os saques e fomos ao tie-break decisivo. Jogamos alguns ralis muito longos, e o primeiro a ter uma chance de fechar o jogo fui eu. Estava ganhando por 6/5, match point. Nunca esquecerei aquele ponto. Um longo rali, o adversário manda uma bola longa, e eu devolvo, achando que o jogo acabou, mas ninguém marca bola fora. Como se não pudesse piorar, tive cãibra no dedo médio. Perco o ponto, mas, novamente, fico surpreendentemente quieto. Continuo como se nada tivesse acontecido, mas na minha cabeça uns palavrões já eram pronunciados. Estou xingando, não tanto contra os juízes, mas por causada dor no estômago e no corpo inteiro. Eu salvei o primeiro match point, mas, no segundo, não consegui. Perdi. Ouço a torcida indo à loucura.

Se algo assim tivesse acontecido antes, eu teria argumentado com o árbitro e dito que não podiam roubar a partida de mim daquela maneira. Eu só queria sair da quadra, então desejei o melhor a Daniel na rodada seguinte. Fui para o vestiário o mais rápido possível, e meu técnico pediu um carro para me levar ao hospital. Chegamos lá bem rápido, fizeram uma ressonância, me deram morfina, e me senti ótimo de novo. O médico veio e perguntou se eu sentia alguma dor. Eu disse que me sentia bem e perguntei se podia ir para casa. Ele disse que eu tive sorte de meu apêndice ainda não ter supurado, mas que faltava pouco para aquilo acontecer, então eles precisavam me operar.

Como eu disse, tudo acontece por um motivo. Acho que algo mais forte lá em cima não me deixou vencer aquela partida. Eu dei tudo, mas não foi o suficiente. Eu me conheço e se tivesse vencido, não haveria maneira de eu voltar ao hospital naquele dia. Minha terceira rodada seria no dia seguinte, mas provavelmente meu apêndice teria supurado e seria tarde demais para mim. Desde então, sei que tudo acontece por um motivo."

O texto acima, reproduzido na íntegra em tradução livre, foi publicado algum tempo atrás pelo esloveno Aljaz Bedene, que foi diagnosticado com apendicite em 2012, mas insistiu em voltar à quadra para continuar no qualifying do US Open daquele ano. Por sorte, ele foi derrotado naquele dia por 6/3, 3/6 e 7/6(7) e chegou a tempo à mesa de operações. Bedene voltou às quadras menos de dois meses depois. Hoje, com 25 anos, ele ocupa o 145º posto no ranking da ATP.

Rafael Nadal, que jogou dois torneios depois de diagnosticado com apendicite, decidiu não competir no Masters 1.000 de Paris nem no ATP Finals. No dia 3 de novembro, ele passará por uma cirurgia no apêndice. Não há motivo para imaginar que o espanhol, atual número 3 do mundo, ficará fora dos primeiros torneios de 2015. Nadal, inclusive, já acertou participações no ATP 250 de Buenos Aires e no ATP 500 do Rio de Janeiro.

Sobre o autor

Alexandre Cossenza é bacharel em direito e largou os tribunais para abraçar o jornalismo. Passou por redações grandes, cobre tênis profissionalmente há oito anos e também escreve sobre futebol. Já bateu bola com Nadal e Federer e acredita que é possível apreciar ambos em medidas iguais.
Contato: ac@cossenza.org

Sobre o blog

Se é sobre tênis, aparece aqui. Entrevistas, análises, curiosidades, crônicas e críticas. Às vezes fiscal, às vezes corneta, dependendo do dia, do assunto e de quem lê. Sempre crítico e autêntico, doa a quem doer.