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Saque e Voleio

Louco, letal e letão

Alexandre Cossenza

01/06/2014 20h57

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Cara fechada e punho cerrado. Ninguém rolou no saibro ou deitou-se como se comemorasse um título. Não houve nem um daqueles gritos insanos. Ernests Gulbis, o louco letão, comemorou sem fanfarronices sua vaga nas quartas de final de Roland Garros sem exageros. Como um profissional que sabe de seu potencial e acredita não ter atingido seu ápice ainda.

A campanha deste ano iguala a sua melhor em Grand Slams, que também aconteceu em Roland Garros, no aparentemente longínquo ano de 2008. Naquele ano, o letão precisou passar pelo top 10 James Blake. Desta vez, a vítima foi Roger Federer. A atuação deste domingo foi quase irretocável e deixou o suíço sem opções táticas, restrito, na maior parte do tempo, a tentar a sorte mas trocas de bola do da linha de base. E o placar final, 6/7(5), 7/6(3), 6/2, 4/6 e 6/3, omite que Gulbis esteve à frente em quatro dos cinco sets.

O triunfo mostrou toda a versatilidade do imprevisível letão. Com uma consistência poucas vezes (ou nenhuma!) vista em um jogo de cinco sets desta importância, Gulbis sacou bem e, já no começo, mostrou que jogaria de igual para igual com o "plano A" de Federer. O letão plantou-se colado na linha de base e trocou pancadas sem medo. Atacou mais – como todos – a esquerda do adversário e fez estrago com seu backhand na paralela (veja alguns lances aqui).

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Federer, dono de tantos recursos, usou de certa variação. Nada, contanto, que lhe desse um plano B com sucesso constante. Quando recebeu slices, Gulbis não se mostrou incomodado. Chamado à rede, o letão mostrou-se eficiente. Federer também ensaiou subir mais, mas conteve-se depois de levar meia dúzia de lobs. Em certo momento do jogo, aliás, foi Gulbis quem mais provocou pontos junto à rede. Em um game, depois de sacar em 0/30, deu três curtinhas seguidas – o que requer uma boa dose de coragem e precisão, visto que Federer nunca se afasta muito da linha de base. Ganhou os três pontos.

Não foi um domínio do letão. Claro que não. A excelente apresentação foi necessária para superar um oponente do calibre de Federer. E, ainda assim, o suíço teve suas chances. No segundo set, vencendo por 5/3 e 40/15, Federer teve uma bola fácil junto à rede para fechar a parcial. Escolheu o lado errado para o smash, mandou a bola em cima do adversário e viu Gulbis encaixar uma passada na paralela. O letão conseguiu a quebra e venceu o tie-break pouco depois.

Quando arrancou na frente e venceu o terceiro set com folga, o silêncio na Chatrier era desconrotável. A torcida de Paris, que sempre foi pró-Federer, só acordou no quarto set, quando o suíço esboçou uma reação, e veio com força total quando Gulbis pediu atendimento médico depois do sétimo game (Federer liderava por 5/2). O letão, que desde o segundo set levava a mão às costas aqui e ali, voltou da pausa mais agressivo e preciso. Conseguiu uma quebra e ficou a dois pontos de empatar a parcial, mas o suíço saiu de 0/30 e fechou o set em 6/4.

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Foi, contudo, o último momento de brilho do ex-número 1 do mundo. Gulbis abriu o quinto set no mesmo ritmo, com 3/0 no placar. Não houve mais nada que Federer conseguisse fazer para mudar o cenário. Com todas as (muitas) respostas certas, o letão não vacilou mais. Confirmou seu saque até o fim e avançou às quartas.

O talento de Ernests Gulbis não é novidade. A não ser que se considere a feiúra de seu forehand nada ortodoxo, seu jogo não tem buracos evidentes. O rapaz tem um ótimo saque e sabe trocar bolas do fundo, mas tem armas desconhecidas da maioria. Uma deixadinha mortal, bons voleios curtos, ótima variação entre bolas chapadas e com spin. Se não alcançou o máximo de potencial, foi por pura falta de interesse. E ele sabe disso. Gulbis nunca escondeu seu apreço por festas e, depois de despencar do top 30 para além do 150º posto, disse que esteve desinteressado. Foi até mais longe: afirmou, sem modéstia alguma, que muitos dos tenistas que estavam à sua frente no ranking não tinham seu talento (difícil discordar).

Só em 2013, depois de abrir a temporada como número 138 do mundo, é que o letão vem "cumprindo a promessa". Seu ranking, finalmente, reflete seu talento. Agora, em Paris, Gulbis está praticamente a uma vitória de entrar no top 10 e com um encontro marcado com Tomas Berdych. E, do mesmo modo que é fácil prever que haverá um festão em algum lugar de Paris caso o letão vá ainda mais longe, é possível imaginá-lo em uma semifinal com Novak Djokovic ou Milos Raonic.

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Coisas que eu acho que acho:

– Tsonga não vinha fazendo uma grande temporada de saibro, e a chance de uma zebra neste domingo era pequena. Ainda assim, a surra que Djokovic deu no francês foi respeitável. Com o desenho das chaves e os nada intimidantes serviços de Rafael Nadal (que voltou a sentir dores nas costas), parece improvável que o sérvio deixe passar a ótima chance de conquistar Roland Garros.

– Gulbis pediu atendimento médico quando perdia o quarto set. Federer foi ao banheiro depois de perder a terceira parcial. As duas pausas foram solicitadas por tenistas que estavam em momentos ruins. Não vale a pena especular quem fez ou deixou da fazer catimba, mas fica o recado: dizer que Gulbis venceu o quinto set por causa de uma pausa no meio da parcial anterior soa como choro de torcedor.

– No meio da semana, Gulbis respondeu, em entrevista coletiva, que não gostaria de ver suas irmãs jogando tênis profissional. O jovem letão, de 25 anos, afirmou que a vida na modalidade é muito dura para uma mulher. "Uma mulher precisa curtir mais a vida. Precisa pensar na família, nos filhos. Como pensar em filhos se até os 27 anos você está jogando tênis profissional?". Há dois pontos que preciso fazer nesta história. O primeiro é que deu-se atenção demais ao que disse um jovem quase sem experiência de vida fora do tênis (ainda que tenha passado uma noite em uma prisão sueca por sair com uma prostituta). Esquecemos que atletas, em sua maioria, são garotos que pouco experimentaram o que o mundo tem a oferecer. Logo, dá-se atenção demais e julga-se alguém muito cedo, não importando a idade e suas raízes culturais – e aqui entra o segundo ponto. Não estou falando (apenas) de Gulbis nem o defendendo, mas um sério problema que se vê com muita frequência hoje – em especial nas redes sociais – é a vontade, que na prática é quase uma exigência, de que todos pensem da mesma maneira. Não pode ser assim, por mais que o mundo atravesse um processo de globalização. E "atravessar", no presente do indicativo, parece ser a chave. Pessoas de lugares diferentes trazem consigo conceitos distintos de ver o mundo e a vida. Ainda que certos hábitos de um cidadão soem absurdos e preconceituosos na cultura de outro, vale parar e contextualizar antes de fazer um daqueles julgamentos que, nas redes sociais, quase sempre vêm de um perfil sem rosto ou identidade.

– Voltando ao tênis, não é a primeira declaração de Gulbis que causa furor. Algum tempo atrás, ele disse que o top 4 era entediante, que todo mundo se respeitava demais. Há uma dose de verdade nisso, mas poucos no circuito ousam falar abertamente sobre o tema (justamente porque se respeitam demais!). Hoje, Gulbis é o mais perto que o tênis tem de um bad boy (ninguém viu Fabio Fognini passando noite na cadeia nem dizendo que é bacana a maconha ser "liberada" na Holanda). Fala o que vem na cabeça, quebra um montão de raquetes, discute com árbitros e parece pouquíssimo incomodado com a fama. Pelo contrário, a impressão que passa é a de que ele se diverte com isso tudo, o que só alimenta seu lado bad boy. O que eu acho que acho? Que é divertido ter gente assim. Faz bem ao circuito. Desde que essa turma não seja levada a sério demais, mas isso você já leu no parágrafo acima!

Sobre o autor

Alexandre Cossenza é bacharel em direito e largou os tribunais para abraçar o jornalismo. Passou por redações grandes, cobre tênis profissionalmente há oito anos e também escreve sobre futebol. Já bateu bola com Nadal e Federer e acredita que é possível apreciar ambos em medidas iguais.
Contato: ac@cossenza.org

Sobre o blog

Se é sobre tênis, aparece aqui. Entrevistas, análises, curiosidades, crônicas e críticas. Às vezes fiscal, às vezes corneta, dependendo do dia, do assunto e de quem lê. Sempre crítico e autêntico, doa a quem doer.